23/07/2003 - 7:00
DINHEIRO ? O único jeito de ser capitalista hoje em dia é o jeito que os mercados e as instituições como o FMI definiram?
JOHN KAY ? Algumas pessoas realmente acreditam que existe
uma única e simples maneira pela qual as economias de mercado funcionam. O que eu tenho tentado dizer é que os países mais
bem-sucedidos do mundo ? Dinamarca, Suíça e Holanda ? têm um entendimento muito mais sofisticado do que seja economia de mercado. A visão de economia do Consenso de Washington é
uma simplificação do capitalismo, quase uma caricatura. Eu não entendo por que não se escrevem mais livros sobre Dinamarca,
Suíça e Holanda. Eles são mais difíceis de entender, mas são
exemplos reais de sucesso.
DINHEIRO ? Mas é possível conduzir uma economia de mercado de forma diferente daquela prescrita pelos bancos e organizações internacionais?
KAY ? Eu acredito que sim, mas é preciso tomar cuidado para não ser simplista demais na outra direção. Ser contra o mercado é mais ou menos como ser contra a física quântica. Não faz o menor sentido. O mercado é uma realidade com a qual temos de viver. O que deveríamos tentar fazer entender é como o mercado funciona e ajudá-lo a funcionar a favor dos nossos objetivos e não contra eles. Além da economia de mercado eu não vejo outra forma de criar e distribuir prosperidade para um largo número de pessoas. Mas não adianta ser ingênuo e achar que tudo deve ser deixado ao mercado ? e nem acreditar ingenuamente que se pode ficar fora do mercado.
DINHEIRO ? O que os governos podem fazer para melhorar a economia de mercado em seus países?
KAY ? Os governos são muito ruins em escolher as indústrias que devem se desenvolver e em alocar os recursos para isso. Essa foi a principal razão para o fracasso das economias estatais planificadas. O mercado aloca recursos de forma muito mais eficiente. Não porque os homens de negócios sejam mais inteligentes que os políticos ? eles não são ? mas porque no mercado as pessoas tentam milhões de pequenas experiências diárias que são rapidamente abandonadas quando não funcionam. Essa fórmula de tentativa e erro repetida à exaustão é a única rota que eu conheço para o desenvolvimento econômico. Isso é o que tivemos na Europa.
DINHEIRO ? Mas de acordo com os gurus da economia global a Europa tem um modelo econômico decadente…
KAY ? Nos últimos anos a Europa sofreu quase uma lavagem cerebral para acreditar que falhou em relação aos Estados Unidos. Mas isso não é verdade. Os países mais ricos do mundo estão na Europa. Nos últimos 50 anos a economia européia teve um desempenho tão bom quanto a da economia americana. Mas para perceber isso é preciso ter um conceito mais elaborado e socialmente mais denso de como os mercados funcionam.
DINHEIRO ? Mas não seria justo dizer que a Europa trocou o dinamismo econômico pela segurança social?
KAY ? Mais ou menos. A grande comparação que sempre se faz é entre Estados Unidos e França. Se você olhar o período entre 1980 e 2000, a produtividade francesa (medida em produção por homem/hora de trabalho) cresceu 15% mais do que a americana. Mas em termos de rentabilidade os americanos foram 15% melhores. Essa diferença pode ser inteiramente explicada pelo volume de trabalho. A média de horas trabalhadas na França caiu 10%, enquanto nos EUA ela aumentou em 5%. Ninguém está errado ou certo. Simplesmente cada um fez suas escolhas. Da minha parte eu escolhi viver na França metade do ano…
DINHEIRO ? Mas a escolha francesa é sustentável?
KAY ? Claro. Em 50 anos os franceses ainda terão férias de cinco semanas. Por que não? É isso que eu chamo de lavagem cerebral: não existe uma única maneira de fazer as coisas.
DINHEIRO ? O sr. acha que a Terceira Via de Tony Blair oferece uma saída para os problemas da economia global?
KAY ? Da forma como eu vejo há vários tipos de idéias de Terceira Via. Muitas delas têm origem no fundamentalismo de mercado e sua única diferença é um discurso mais agradável. É o chamado capitalismo com face humana. O outro tipo de Terceira Via preconiza a economia planificada, com pequenas variações sobre o que havia no passado. Isso acontece porque os partidos de esquerda já sabem que os modelos socialistas tradicionais não funcionam, mas eles não têm uma alternativa coerente a oferecer. Embora atribua um papel excessivo ao Estado, essa ainda é minha versão favorita da Terceira Via. Ela entende que o mercado só funciona no contexto de várias outras instituições sociais e que a gestão da economia não está separada da cultura e da política de cada uma de nossas sociedades.
DINHEIRO ? Em seu livro o sr. afirma que a qualidade
das instituições é responsável pela diferença entre
países ricos e pobres…
KAY ? Sim. O maior fiasco do neoliberalismo nos últimos anos foi a Rússia. E a causa do fracasso foi a idéia de que bastava criar um sistema de propriedade privada em lugar do sistema estatal para que tudo o mais se ajeitava automaticamente. Todos nós sabemos que isso foi um desastre. As propriedades foram apropriadas por pessoas próximas aos políticos e basicamente ocorreu um roubo. Talvez fosse inevitável que essas propriedades acabassem em mãos dos antigos administradores do Estado, mas dizer que não importava como isso fosse feito foi um erro terrível. A forma social da propriedade tem enorme e duradoura importância. Parte das diferenças atuais entre os países de colonização britânica e aqueles de colonização espanhola ou portuguesa foi a forma de organização da propriedade. Nas colônias britânicas os direitos de propriedade tomaram forma de baixo para cima, de acordo com os interesses dos colonos. Na América Latina foi diferente e isso explica em boa parte as diferenças no processo de desenvolvimento.
DINHEIRO ? Há no Brasil grande interesse pela China e pela forma como o país tem crescido…
KAY ? O caso da China mostra que não há um modelo único de desenvolvimento. Por outro lado, trata-se de um país com
muitas vantagens em relação aos outros países em
desenvolvimento. Um dos grandes mistérios da história é
por que o desenvolvimento econômico começou 300 anos atrás na Europa Ocidental e não no Sul da China, onde as circunstâncias objetivas eram similares. O que está acontecendo agora, de uma certa forma, é que a China está alcançando os outros. Na verdade não se trata de explicar por que ela está se desenvolvendo, mas sim por que isso não aconteceu antes.
DINHEIRO ? Mas o que há na cultura ou na sociedade chinesa que a faz mais propensa ao desenvolvimento econômico?
KAY ? É uma combinação entre capacidade inovativa e pluralismo.
Na China sempre houve o primeiro, mas o segundo foi reprimido por séculos, devido ao desastroso sistema político que havia no mandarinato e depois com Mao. Em boa medida a história da
China é a história de como os governos puseram tudo a perder. E nisso há um traço em comum com a América Latina. Os chineses se dão tão bem fora da China que eles não podem ser tão ruins quando estão lá dentro.
DINHEIRO ? O que funciona melhor: perseguir uma estratégia autônoma de desenvolvimento, como a China, ou seguir as receitas das instituições internacionais, como faz o Brasil?
KAY ? Eu não sei. O que eu posso dizer com segurança é que o modelo ingênuo de economia de mercado proposto pelo Consenso
de Washington não funciona, porque ele não entende o que
acontece no mercado. A economia americana não funciona da
forma como esses modelos baseados na ambição a descrevem. E quanto mais a economia real se aproxima desse modelo, pior ela fica. Veja o caso da Enron.
DINHEIRO ? O sr. é muito crítico do que chama de Modelo Americano de Negócios. Mas um modelo que funciona bem nos Estados Unidos não merece alguma atenção?
KAY ? O ponto é que não funciona nos Estados Unidos. A General Electric não é dirigida por Jack Welsh e nem as pessoas fazem o que ele diz para elas fazerem. Na verdade os negócios são conduzidos por milhares de funcionários que executam suas funções de maneira eficaz no interior das organizações. É isso que temos que reproduzir.
DINHEIRO ? Em seu livro o sr. diz que não é a ambição que move as pessoas no capitalismo. O que as move então, o medo?
KAY ? Nem uma coisa nem outra. Nas economias de maior sucesso, na Europa Ocidental, as pessoas não são movidas por ambição ou por medo. Elas simplesmente querem fazer seu trabalho juntas, no interior das organizações. Parece banal mas é assim. Quando pensamos nas organizações em que nós mesmos trabalhamos, é fácil perceber que elas seriam horríveis se as pessoas fossem motivadas por pura ambição e competissem umas com as outras o tempo todo.
DINHEIRO ? Além de constatar que o mercado é uma coisa mais complexa do que parece, existe algo que possamos fazer?
KAY ? O que se pode fazer é mudar aos pouquinhos. Todo grande esquema de transformação acaba falhando, como ocorreu repetidas vezes no socialismo. O que os políticos podem fazer em termos de economia é melhorar um pouco as coisas, lugares bem determinados. O segredo é pensar pequeno, pensar pequenas mudanças. Outro dia um jornalista resumiu algumas idéias minhas dizendo que ?a grande idéia é que não há mais grandes idéias?. Achei engraçado.