21/11/2014 - 20:00
É praticamente impossível falar em uma grande obra de engenharia no Brasil sem citar o nome da paulistana Camargo Corrêa. E não é para menos. A empreiteira, fundada em 1939, num modesto escritório na rua Xavier de Toledo, no centro velho de São Paulo, por uma dupla improvável, formada por Sebastião Camargo, um ex-carroceiro que transportava areia para a construção de estradas no interior paulista, e pelo advogado Sylvio Corrêa, é hoje uma potência com receita líquida de R$ 25,8 bilhões, obtida com operações em 22 países e envolvendo 65 mil trabalhadores.
Chegou a esse ponto depois de ganhar fama e poder a partir de sua associação com prefeituras, Estados e, principalmente, com o governo federal – tanto em contratos assinados com a administração direta quanto na prestação de serviços para estatais. Resultado: além de ter seu nome gravado em marcos como Brasília, a Transamazônica, a Hidrelétrica de Itaipu, a Ponte Rio-Niterói, a Rodovia Rio-Santos e o Metrô de São Paulo, a empresa também se viu arrolada em grandes escândalos de corrupção que sacudiram a República nos últimos 60 anos – como o que hoje envolve a Petrobras.
A empreiteira, que lidera a construção da Hidrelétrica de Jirau, um empreendimento de R$ 18 bilhões no rio Madeira, em Rondônia, foi acusada, na última década, em processos de corrupção em inúmeras obras, no pagamento de propina a políticos com o objetivo de ganhar a licitação para a construção de embarcações para a Transpetro, além de atuar na formação de cartel para a construção da Linha Lilás, do Metrô de São Paulo. O caso mais rumoroso ocorreu em 2009, com a operação Castelo de Areia. É que, pela primeira vez, a empreiteira teve altos funcionários presos pela Polícia Federal (PF).
Dárcio Brunato, diretor de controladoria, e Fernando Dias Gomes, diretor de auditoria e seu antecessor e consultor à época, Pietro Francesco Bianchi, acabaram sendo indiciados por evasão de divisas e crime contra o sistema financeiro. Em meio ao processo de buscas e apreensões conduzidas pela PF foram encontradas 54 planilhas na casa de um diretor, contendo nomes de supostos beneficiários de propinas e de recursos de caixa 2. A lista incluía graduados integrantes do governo federal, do Distrito Federal e da prefeitura de São Paulo. As investigações acabaram não resultando em efeitos práticos porque o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou a argumentação do advogado Márcio Thomaz Bastos, de que as provas foram obtidas de forma irregular.
Bastos, que foi ministro da Justiça no governo Lula, morreu na quinta-feira 20, em São Paulo. Embora tenha saído ilesa em termos judiciais, pelo expediente utilizado por Thomaz Bastos, a Camargo Corrêa teve sua imagem tisnada pelo episódio. Internamente, inclusive. Segundo um executivo que acompanhou de perto os acontecimentos, o moral dos empregados foi seriamente abalado. “Muitos funcionários que tinham orgulho de dizer a amigos e familiares que trabalhavam na empresa, não escondiam seu desconforto”, afirma a fonte. Segundo ele, para reanimar a tropa, Vitor Hallack, presidente do Conselho de Administração da holding do grupo, reuniu os principais executivos, num encontro fechado, no bunker da rua Funchal, na Vila Olímpia, bairro da capital paulista onde está instalado o escritório central.
Depois de detalhar as providências que estavam sendo tomadas, Hallack conclamou os presentes: “Vamos virar a página.” Como se vê, não virou inteiramente. Se escapou da Castelo de Areia, a Camargo Corrêa novamente se vê enredada em mais um escândalo de megaproporções. O tempo fechou há duas semanas, quando a Justiça determinou a prisão de 27 empresários e executivos de inúmeras empresas associadas a contratos com a Petrobras. Na lista, três dos mais graduados executivos da empreiteira: o presidente, Dalton dos Santos Avancini; o vice-presidente, Eduardo Leite; além do presidente do Conselho de Administração, João Ricardo Auler.
O trio, antes acostumado a regalias à altura de executivos de alta patente, está encarcerado em salas improvisadas e corredores da Polícia Federal, em Curitiba, obrigados a dormir em colchonetes no chão. Todos tomam banho em chuveiros coletivos fora das celas e têm de lavar as próprias roupas. O banho de sol é de uma hora diária, e a alimentação se restringe a marmitas oferecidas pela própria PF. Eles aguardam os desdobramentos das investigações sobre superfaturamento de contratos com a Petrobras do grupo de empreiteiras indiciadas, no valor global de R$ 60 bilhões.
Procurada, a direção da Camargo Corrêa não quis se manifestar. Como de costume, seus acionistas e executivos se blindaram com a contratação de firmas de renome, como o escritório comandado até a semana passada pelo ex-ministro da Justiça Thomaz Bastos, além dos advogados Celso Vilardi e Pierpaolo Cruz Bottini. Vilardi e Bottini não concordaram em falar sobre como pretendem conduzir a defesa dos acusados. Uma pessoa próxima ao caso garantiu, no entanto, que a ideia é tentar ao menos reduzir os inevitáveis danos. “A empresa foi vítima de extorsão”, diz a fonte, que pediu para não ter o nome revelado.
“Mesmo antes das prisões dos diretores já estávamos conversando com o Ministério Público.” A formalização de um acerto estaria dependendo das contrapartidas oferecidas. Até agora, a Camargo Corrêa aceita pagar uma multa para encerrar o caso. Com uma condição: desde que isso não implique o cancelamento dos demais negócios com a administração pública. A pré-disposição em colaborar ganhou mais força na quarta-feira 19, após a decisão da Justiça do Paraná de manter presos os principais executivos da empreiteira. Mesmo com todas as evidências, tanto os advogados quanto seus gestores se consideram vítimas de extorsão.
Trata-se de uma alegação que a esta altura do campeonato já não faz sentido. Até porque, ao longo de décadas os casos envolvendo malfeitos entre empresários, políticos e agentes públicos se sucedem de forma espantosamente previsível. “As empreiteiras são corruptoras ativas”, diz Claudio Weber Abramo, presidente da Transparência Brasil, ONG que tem como ofício passar um pente-fino nas contas governamentais. Para Weber Abramo, um cartel só funciona com o conhecimento do gestor da empresa corrompida e também da corruptora.
Sob qualquer ângulo que se analise, estamos diante do maior esquema ilícito envolvendo agentes públicos, empresas privadas, estatais e a classe política. O desfecho é imprevisível. “A corrupção em obras e serviços públicos no Brasil é endêmica, infelizmente”, diz Marcelo Batlouni Mendroni, promotor de Justiça de São Paulo. “É um câncer maligno que está acabando com o País, com a sua receita e com os seus investimentos.” Especialista na investigação de crimes financeiros e cartéis, Mendroni denunciou, em 2012, as empresas acusadas de fraudar a concorrência da linha Lilás do Metrô de São Paulo.
Apesar de seis empreiteiras denunciadas por ele constarem na lista das investigadas pela Operação Lava Jato, o promotor evita citar alguma empresa de forma isolada. Mesmo assim, considera frágil a justificativa usada pelos advogados dos envolvidos de que o malfeito é fruto de pressão de quem contrata seus serviços ou uma questão de sobrevivência do negócio. “Não dá para engolir essa frágil e confortável justificativa”, afirma. “A corrupção favorece os dois lados, então ambos são interessados e trabalham para que ela se concretize.” (Leia entrevista completa abaixo).
Uma das formas de evitar que executivos saiam da linha e coloquem em risco a reputação da empresa tem sido a adoção de um código de conduta. No papel, tanto a Camargo Corrêa quanto outras arroladas na operação Lava Jato, como a Mendes Junior, a Toyo Setal, a Engevix, a OAS e a UTC possuem instrumentos do tipo. Do ponto de vista técnico, os chamados mecanismos de compliance, que deverão ser introduzidos na própria Petrobras, segundo a presidente Graça Foster, servem para mostrar à sociedade e aos investidores institucionais o grau de confiabilidade, sustentabilidade e os valores sob os quais o negócio é regido.
No site da Camargo Corrêa existe uma página que orienta sobre como fazer denúncias anônimas envolvendo problemas internos. Noutro ponto do site, estão as regras de “conduta em relação ao poder público”. O texto é claro e diz que “qualquer forma de pressão ou solicitação de agentes públicos, deve ser refutada e imediatamente comunicada à direção da empresa.” Ao que parece é tudo figuração. Segundo especialistas, o impacto na reputação dessas empresas já aconteceu e é grande. “As empreiteiras fazem parte de um dos setores mais fechados e nebulosos, o que fortalece a visão negativa da população sobre elas”, diz a especialista em branding e coordenadora de pós-graduação da ESPM-SP, Daniela Khauaja.
Do ponto de vista legal, as investigações devem reservar, ainda, muitas surpresas. Afinal, graças ao expediente da delação premiada, fica mais fácil chegar aos responsáveis e montar o quebra-cabeça envolvendo esquemas de rapinagem de dinheiro público, como esse que lesou a Petrobras. Apenas no caso da refinaria Abreu Lima, em Pernambuco, o rombo deve ser expressivo. Orçada inicialmente em US$ 2,5 bilhões, a obra deverá custar US$ 18,5 bilhões e quem está por trás dela é a septuagenária Camargo Corrêa.
“PEIXES” A verdadeira razia causada pela operação Lava Jato surpreendeu até mesmo o pessoal que atua no setor e se considerava escaldado com as inúmeras operações do tipo que, até hoje, não foram para frente. Isso ficou evidente em função do clima de velório que se abateu sobre a baiana OAS. É que, até então, o sistema de blindagem da empresa era considerado eficiente. Isso porque, um de seus principais instrumentos era a contratação de “peixes”, nome dado aos parentes de políticos que recebem salários elevados e acabam garantindo a impunidade. Aparentemente, desta vez não foi suficiente.
O presidente José Aldemário Pinheiro Filho e outros quatro gestores foram parar na cadeia. O mesmo aconteceu com executivos das outras empresas, como a Queiroz Galvão e a Iesa. A pressão de sócios estrangeiros e os ecos do mensalão, que levou para a cadeia luminares da política, como José Genoíno e José Dirceu, do PT, e Roberto Jefferson, do PTB, e empresários como a banqueira Kátia Rabello e o publicitário Marcos Valério, têm incentivado alguns dos suspeitos da Lava Jato a investir na delação premiada. Além do operador do esquema, o doleiro Alberto Youssef, e do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, vários envolvidos se renderam às evidências e se dispuseram a colaborar.
No final de outubro, o empresário Julio Camargo, dono de três empresas de consultoria em São Paulo e representante da japonesa Toyo Setal, aceitou contar o que sabe. A disposição em colaborar foi apressada por um misto de pressão dos japoneses e a ação coercitiva do Ministério Público do Paraná. Resultado: Camargo pagou multa de R$ 40 milhões e hoje tenta reerguer seu negócio com a venda de parte do patrimônio pessoal e o enxugamento de suas empresas. Ainda não está claro se os contratos entre a Toyo Setal e a Petrobras – que envolvem R$ 1,1 bilhão, referente ao polo Petroquímico do Rio (Comperj), e de R$ 2,09 bilhões para construção de uma fábrica de fertilizantes em Uberaba – serão cancelados.
Na semana passada, foi a vez do ex-gerente da diretoria de serviços da Petrobras, Pedro Barusco, aderir à delação premiada, ao mesmo tempo que se comprometia a devolver US$ 100 milhões
aos cofres públicos. Uma situação bem diferente das décadas de 1950, 1960 e 1970, quando a proximidade com o poder serviu de salvo-conduto para Sebastião Camargo,o fundador da Camargo Corrêa. Nascido em Jaú, no interior de São Paulo, o ex-carroceiro era conhecido como “China” entre seus pares. A pouca instrução formal (ele nem chegou a concluir o primário), não lhe impediu de construir uma profícua e meteórica carreira empresarial.
Seu primeiro contrato com o poder público foi assinado em 1940, um ano após a fundação da empreiteira, quando foi contratada pelo DER-SP para fazer a terraplanagem de um trecho de 12 quilômetros em Apiaí (SP). Sua capacidade de fazer amigos e conquistar aliados poderosos para seus negócios entrou para os anais da história empresarial brasileiro. Diz a lenda que ao receber a missão brasileira para a assinatura do contrato de construção de Itaipu, o então presidente do Paraguai, o ditador Alfredo Stroessner, teria perguntado: “Donde está don Sebástian?”, exigindo a inclusão da Camargo Corrêa no consórcio responsável pela obra. Afinal, seu companheiro de pescaria não poderia ficar fora da jogada.
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“A corrupção em obras e serviços públicos no Brasil é endêmica”
Marcelo Batlouni Mendroni, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo, especialista em investigar crimes financeiros e cartéis
Por Rosenildo Gomes Ferreira
O sr. considera que faltam mecanismos objetivos para coibir essas práticas ilícitas?
A corrupção, infelizmente, se tornou algo tolerável pela população brasileira, quando, ao contrário, deveria causar revolta. Para que a sociedade evolua nesse sentido, em primeiro lugar, não basta que as pessoas deixem de praticá-la; da pequena “caixinha” para o policial não multar pela infração de trânsito à mais elevada dos grandes contratos públicos. É preciso que as pessoas pratiquem ações pró-ativas, que sejam absolutamente intolerantes e denunciem toda e qualquer corrupção às autoridades. O combate à corrupção tem que partir, em primeiro plano, da própria sociedade.
No caso da operação Lava Jato, as maiores empreiteiras foram arroladas. O sr. acredita em um desfecho diferente neste caso?
Como espectador, torço muito para que o resultado seja efetivamente rigoroso para os comprovadamente culpados. Este já é um caso que pode servir de modelo, sendo muito bem conduzido pela PF, o MPF e a Justiça Federal. O Brasil precisa de conclusões sérias e rígidas em casos como esse, para serem paradigmas de mudança de comportamento da sociedade e servirem de exemplo para as novas gerações.
Quais seriam os fatores que favorecem a existência da corrupção no serviço público?
Antes de mais nada, é a cultura da tolerância, como já disse. Depois, o desrespeito e o pouco caso com o dinheiro público. A ganância dos agentes públicos e dos particulares corruptores, que sempre querem mais e mais bens materiais. Por fim, a sensação de que vale a pena arriscar, contando com o óbvio silêncio da outra parte, coautora interessada. Inclui-se aí, ainda, a impunidade, arriscando eventual fracasso de investigação ou de intermináveis medidas processuais penais apresentadas por excelentes advogados contratados, muitos pagos com o próprio dinheiro daquela corrupção.
Dá para imaginar obra pública sem corrupção no Brasil?
Apenas muito excepcionalmente. A corrupção em obras e serviços públicos no Brasil é endêmica, estando presente em todos os municípios, em todos os Estados e na União, infelizmente. É um câncer que está acabando com o País, com a sua receita e com os seus investimentos. Obras e serviços públicos superfaturados são um prejuízo irresgatável. Câncer não se combate com aspirina. São necessárias medidas equivalentes a remédios penais e processuais penais muito rigorosos.
Os executivos da Camargo Corrêa e das demais empresas dizem que são obrigadas a participar do esquema. Faz sentido esse tipo de alegação?
Sem falar especificamente de uma ou de outra empresa, claro que não dá para engolir a frágil e confortável justificativa de que elas são sempre vítimas de extorsão dos funcionários públicos. Nem o macaco da Nasa acredita mais nisso. Não existem “circunstâncias” das quais não se queira participar e sejam obrigadas. Basta um sonoro não. A corrupção favorece os dois lados, então ambos são interessados e trabalham para que ela se concretize. Na prática, corrupto conhece as atitudes do corruptor e vice-versa.
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