Se há um bom desatador de nós na história recente da República brasileira essa pessoa é o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Desde seus tempos de líder sindical, a negociação e a flexibilização sempre foram cruciais todas as vezes em que petista logrou vitória. E não seria diferente desta vez. Único nome que foi capaz de formar uma frente ampla viável para vencer o presidente Jair Bolsonaro nas urnas, Lula abraçou o contraditório para voltar ao mais alto posto do Executivo e agora, antes mesmo de seu mandato começar oficialmente, já enfrenta seu nó górdio.

E por falta de um imbróglio, são pelo menos cinco que precisarão ser desatados ou resolvidos antes de 1° de janeiro. Todos eles causam, em alguma medida, estragos consideráveis. Alguns para a economia, outros para a imagem do Brasil no exterior. Há também os que podem custar aliados históricos do Partido dos Trabalhadores. E se os prejuízos são variados, há um denominador comum em todos os nós: o Centrão. Dono e proprietário da condução política brasileira nos últimos anos, esses políticos possuem nas mãos uma bomba de gastos que supera R$ 200 bilhões, anistia a desmatadores e facilitação de exploração de biomas, além do poder de estar muito mais simbioticamente ligado ao governo Lula do que se prometera na campanha eleitoral.

A escolha de Geraldo Alckmin como vice foi um tiro certeiro, mas não bastará para resolver os impasses que se agigantam antes mesmo do governo começar. Lula já percebeu que vencer a eleição tenha sido a parte mais fácil do processo, e governar exigirá ainda mais esforço, conciliação e paciência. Alguns economistas que inflaram sua campanha, como Pérsio Arida, Lara Resende e Armínio Fraga já questionaram algumas decisões e a sensação geral é que, ao flertar com o Centrão, Lula se afaste da corrente ampla e democrática decisiva para sua eleição. E talvez caiba ao petista a mesma resposta que Alexandre, o Grande, deu ao impasse do nó górdio em 334 a.C. e cortar sem dó — no caso, a relação fisiológica que atravessa governos.

PEC da transição

Alan Marques

Tudo parecia bem. Lula precisava garantir recursos para o Bolsa Família e o Congresso acenava positivamente. Até que o leite azedou. Em Brasília há duas explicações para essa repentina mudança de postura. A menor disposição do presidente da Câmara, Arthur Lira, a aceitar o projeto temendo não ser reconduzido ao cargo em fevereiro de 2023, e a pressão midiática que o PT tem feito sobre o fim do Orçamento Secreto. Seja qual for a explicação, o fato é que a minuta da PEC apresentada pelo Partido dos Trabalhadores estava longe de ser a ideal. Não havia recortes de tempo de duração, nem apresentação de soluções orçamentárias (para elevar arrecadação ou controlar despesas). Também faltava a costura mais clara da nova âncora fiscal que entrasse no lugar do teto de gastos. E tudo isso enquanto o cronograma do Congresso aponta que, para que entre em vigor em janeiro, a questão precisa ser resolvida até 15 de dezembro.

Com o tempo correndo, e sem a presença física de Lula em Brasília tocando o processo, o assunto virou um Deus nos acuda. Dentro da equipe de transição o discurso é sobre haver, sim, pelo menos duas opções de ancoragem fiscal. Na Câmara, os petistas e apoiadores batem na tecla de que é preciso garantir ao menos quatro anos dos recursos do Bolsa Família pela Lei. Na alta cúpula do governo, Gleisi Hofmann admite que talvez seja preciso negociar dois anos. O resultado são cifras soltas e acordos não firmados. O PT estimava a necessidade de obter ao menos R$ 170 bilhões livres do teto de gastos. O Congresso já queria subir esse valor para R$ 186 e incluir as emendas do relator. No Senado, um texto de Tasso Jereissati (PSDB-CE) apresentou uma alternativa com gastos de R$ 80 bilhões, enquanto o relator do Orçamento de 2023, Marcelo Castro (MDB-PI), fala em R$ 100 bilhões. Nenhuma dessas opções foi formalmente descartada e o PT tem esperado para ver a que tem o melhor equilíbrio entre a aceitação do eleitor, do mercado e, principalmente, a que terá o aval de Lira para garantir aprovação.

NÓ: Gastos fora do teto

ESTRAGO: Entre R$ 80 e R$ 186 bilhões

Ministérios & ministeriáveis

Enquanto Lula esconde o jogo sobre seu time de ministeriáveis, um movimento no governo de transição, no mercado e na imprensa acontece no sentido de descobrir quem serão os escolhidos. Mas no Congresso Nacional o tom é outro. Partidos políticos, inclusive do Centrão, colocam na balança o peso, a medida e o custo de um apoio ao governo eleito. E a temporada da colheita está aberta. Com importantes textos a serem validados pelo Legislativo até dezembro, o PT precisará pedir favores, e terá de pagar depois. A expectativa é que, além dos 14 partidos que já formalizaram apoio ao presidente eleito, outras seis legendas ainda se aproximem do petista, o que exigirá uma articulação ainda maior com a base que formou a chapa da campanha presidencial.

Mas dentro do Centrão haverá resistência, independentemente do gesto de Lula. O destaque especial vai para o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro e que tem questionado sem apresentar provas a lisura do processo eleitoral no segundo turno (e só nos votos para presidente). O Partido Liberal elegeu 99 deputados e se tornou a maior bancada da Câmara, com o status do MDB nas décadas passadas. E essa talvez seja a diferença fundamental. O antigo PMDB, enquanto maioria, esteve presente em todos os governos. Agora Lula vai lidar com o fato de que a maior legenda está na oposição. E ele sabe que é difícil saber como o Centrão se dividiria, ou se haveria espaço para diálogo. Segundo Lula, a conversa com todos os partidos é parte da democracia e é essencial para um governo de coalizão. O problemas é que essa conta vem. E ele sabe.

NÓ: Acomodar divergentes dentro de um governo só

ESTRAGO: Perda de aliados históricos do PT ou dificuldade de governar no Congresso

Meio ambiente

No apagar das luzes do dia 22 de novembro a Comissão de Meio Ambiente na Câmara deu dois passos importantes para aprovação de leis que se opõem diretamente aos discursos sobre preservação e fim do desmatamento promovido por Lula na COP-27. Pela decisão dos parlamentares ficou firmado que o trânsito de madeiras pelo Brasil se tornará isento de controle do órgão ambiental se o curso for entre produtores familiares. Na prática, segundo Raul Valle, especialista em políticas públicas do WWF-Brasil, isso significa um furo na já defasada métrica de controle do comércio ilegal do produto.

“Isso vai ser uma festa para todos os madeireiros porque o produtor vai poder movimentar sem registro no órgão ambiental”, disse. Esse projeto ainda passa por mais uma comissão e depois segue para o Senado. O outro texto aprovado libera a ocupação irregular de campos de altitude da Mata Atlântica. Locais de alta concentração de riqueza biológica, o controle do desmatamento local foi reduzido drasticamente após a Lei da Mata Atlântica, mas é constantemente alvo de crítica de pequenos produtores do agro. O projeto prevê uma anistia para produtores que ocuparam locais com essas características antes de 2008.

Tramitando em celeridade os textos serão usados como barganha pelos parlamentares do Centrão, já que trata de assuntos sensíveis para o presidente eleito. E também versa contra um acordo anunciado por Lula na COP e que envolve o Brasil, a República do Congo e a Indonésia pela preservação de florestas tropicais. As três nações têm, juntas, 52% de todo o bioma desse tipo do planeta. Foi depois de o petista anunciar a intenção de formalizar essa parceria que Alemanha e Noruega sinalizaram o retorno dos fundos de apoio à preservação. Caso não consiga reverter o cenário (a expectativa é que seja barrado no Senado) Lula terá seu primeiro revés de repercussão internacional.

NÓ: Nova lei da Mata Atlântica e transporte de madeira

ESTRAGO: Perda de apoio da comunidade internacional ou briga com a bancada ruralista

Orçamento 2023

Roque de S

Outro assunto que precisa sair dos planos do Legislativo para ser executado é a Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA). Com previsão de votação em 16 de dezembro, na boca do recesso legislativo, o texto precisa estar exequível em 2023, o que parece pouco provável na avaliação de especialistas em orçamento público. Henrique Martins, professor de economia no curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) afirma que a aprovação na Comissão Mista do Orçamento na última quarta-feira (23) foi feita com parâmetros macroeconômicos equivocados. “Eles usam indicadores de PIB, inflação e juros não mais condizentes com o cenário interno e externo”, disse. Pela previsão dos parlamentares, são esperados R$ 2,25 trilhões de gastos com despesas primárias. Das despesas com a dívida pública espera-se que o refinanciamento consuma outros R$ 2 trilhões. O custeio e investimento liberado para o governo federal no próximo ano ficaria em R$ 63,7 bilhões. E aí entra a negociação com Rodrigo Pacheco, presidente do Senado que foi o primeiro a se aproximar do governo.

A principal expectativa de Pacheco envolve o apoio do PT e dos partidos aliados na eleição da mesa diretora em fevereiro em 2023. O governo eleito, que já sinalizou o interesse em sustentar a reeleição do atual presidente da Casa, espera algum gesto ligado ao Orçamento no sentido de incluir, por exemplo, um reajuste real do salário mínimo, os recursos obrigatórios para os programas Farmácia Popular e Minha Casa Verde e Amarela e o custeio da manutenção de escolas públicas. Só esses três itens envolveriam quase um terço do total disponível para investimento previsto no Projeto apresentado por Paulo Guedes, atual ministro da Economia, em agosto.

NÓ: Investimentos de R$ 63,76 bilhões

ESTRAGO: Estouro do teto ou inviabilidade de gestão

Saneamento básico

Fabio Nunes

Dentro do governo de transição também residem impasses que envolvem o Congresso. O mais acentuado hoje se dá dentro do grupo que discute cidades. Isso porque não há unanimidade sobre como lidar com o Marco do Saneamento Básico, que instituiu em 2020 novas regras para privatização da gestão de águas e esgotos no Brasil. A ala mais à esquerda defende que, da forma como está desenhada, as regras prejudicam municípios menores e abre espaço para uma canibalização empresarial que prejudica a universalização. Entre os mais à direita, o texto é visto como um avanço e vai garantir nos próximos anos um aumento da universalização além de reforçar o caixa das cidades e estados que concederam o serviço à iniciativa privada.

Um dos críticos do atual modelo é o deputado federal eleito pelo PSOL, Guilherme Boulos. Segundo o político, que também é líder do MTST, os municípios brasileiros precisam de apoio técnico e financeiro para planejar o setor, especialmente os menores. “É inadmissível que o setor não tenha um fundo nacional que proporcione a universalização do serviço, como outros setores”, disse. Segundo ele, como foi desenhado no Congresso, o Marco “deixa a iniciativa privada criar o oligopólio do setor.” O ruído chegou ao Congresso e os parlamentares que defendem as novas regras já começam a falar da possibilidade do governo Lula promover uma “desregulamentação infralegal do setor” (medidas que seriam tomadas através de decretos e normativas), o que aumentaria a incerteza nos contratos. Em resposta, o deputado do PSOL, disse que “não cabe à Equipe de Transição rever legislação, esse papel é do Congresso”. Segundo ele, cabe ao grupo da transição, havendo necessidade, apresentar “propostas de revogação ou alteração de decretos do Governo Bolsonaro que vão contra a meta de universalizar o saneamento no Brasil.”

NÓ: Marco Legal do Saneamento

ESTRAGO: Perda de parte de aliados históricos do PT ou insegurança jurídica para investimentos em águas e esgotos.