Noventa anos depois da revolução bolchevique que acabou com a aristocracia e imprimiu o socialismo, a Rússia passa por um momento que faria Vladimir Lênin (1870-1924), o homem que comandou a tomada do Palácio de Inverno dos Romanov, se revirar no mausoléu em plena Praça Vermelha. Estima-se que, atualmente, existam mais de 50 mil milionários e 53 bilionários em toda a Rússia. Eles desfilam em carros importados, compram marcas de luxo e rasgam dinheiro como se fosse papel. Moscou tornou-se, ao lado das grandes capitais árabes e asiáticas, uma das principais Mecas da ostentação. Na semana passada, isso ficou ainda mais visível. A capital russa abrigou a Millionaire Fair (Feira Milionária), evento dedicado ao universo dos ricos, com a participação de 250 grifes de luxo. Foi, como diriam os americanos no auge da Guerra Fria, uma ?Disneylândia? para endinheirados. Iates, Mercedes-Benz cravejada com cristais Swarovski, helicópteros, roupas, tabuleiros de xadrez com peças confeccionados com ossos de animais pré-históricos, canivete cravejado com 800 diamantes… Havia de tudo para os novos-ricos russos ávidos pelos últimos lançamentos da indústria ? custasse o que fosse.

Desde o colapso da União Soviética, em 1991, não se via tamanha excentricidade. Há até quem pague US$ 10 mil para viver como pobre durante um único dia. Isso mesmo, milionários cansados de gastar em festas e em objetos de consumo encontraram nos pacotes de uma empresa chamada Clube Lúdico a solução para a monotonia que o dinheiro lhes causou. De acordo com a agência de notícias AFP, muitos têm pago para viver um dia como mendigo em Paris, músico na Itália, garçom ou motorista de táxi em Moscou. Todos, é claro, vigiados por seguranças. Os moscovitas tornaram-se também os maiores compradores de arte da atualidade. Se na década de 80 as vendas eram puxadas pelos yuppies e por milionários japoneses, os magnatas do petróleo e do gás comandam os lances nas grandes casas como Sotheby?s e Christie?s. À grande maioria dos 141 milhões de habitantes russos, que têm salário médio de US$ 200, cabe o saudosismo e, de certa forma, o resgate dos valores deixados de lado depois da queda da poderosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (leia texto ao lado). A Rússia de hoje faz uma releitura das idéias de Nikolai Bukhárin, o líder da direita bolchevique que, em plena década de 20, dizia que os russos deveriam enriquecer. Em 1938, Bukhárin foi fuzilado. Hoje, seria exaltado.

?O capitalismo soviético?
Zoia Prestes*, de Moscou

A Rússia é hoje um país muito diferente daquele que, sem dúvida, deixou suas marcas e que se chamava União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. As mudanças são vistas assim que deixamos o aeroporto internacional de Cheremetievo rumo ao centro de Moscou, passando pelas largas avenidas que, como qualquer grande metrópole do mundo, sofrem com enormes engarrafamentos. Os carros são de luxo e de marcas importadas, as lojas são grandes e modernas, as pessoas vestem-se de acordo com o último grito da moda, os prédios novos são enormes arranha-céus, onde os apartamentos valem milhões de dólares (apesar de a moeda americana ter perdido espaço para o euro). Moscou continua a mostrar uma limpeza impecável, não se vê sujeira nem nos bairros mais afastados, e é considerada uma das mais caras cidades da Europa. Um ingresso para o Teatro Bolshoi não sai por menos de US$100 e nos restaurantes self-service pagam-se no mínimo US$30 por pessoa. A implantação da economia de mercado e o rápido surgimento de uma elite rica e poderosa comprovam que estamos num país capitalista.

Entretanto, se, há 15 anos, o país vivia uma fase de mudança abrupta, sofrendo forte pressão de todos os países capitalistas do primeiro mundo, com a entrada de mercadorias estrangeiras, redes de hotéis, cadeias de fast-food e magazines famosos, percebe-se hoje que o povo russo recuperou a sua auto-estima, seu orgulho, e voltou a valorizar suas tradições e seus costumes. Os russos não estão mais dispostos a enterrar e esquecer sua história. Acabou a fase radical, de apagar todos os traços do passado, de derrubar monumentos e mudar nomes de ruas e avenidas. Agora, convivem muito bem o regime capitalista e a herança dos sovietes. Alguns até comentam que o regime atual pode ser denominado de capitalismo soviético. Enquanto a face capitalista exibe-se de carro importado pelas ruas superengarrafadas, a contraparte soviética anda de metrô e, acreditem, de metrô se chega bem mais rápido ao destino.

* Tradutora e pedagoga, filha de Luís Carlos Prestes, viveu no exílio na URSS de 1970 a 1985