08/10/2003 - 7:00
Para fora do País, o governo passa a imagem de que os contratos são intocáveis. A história é outra, porém, quando se trata de normas internas. Aqui, para atingir as metas de superávit primário, a lei que vale parece ser a do vale tudo. Nos últimos dias, milhares de micros e pequenos empresários ? mais precisamente 80 mil ? receberam cartinhas da Receita Federal com o cancelamento de suas inscrições no Simples, o sistema de tributação criado em dezembro de 1996
para oferecer alíquotas reduzidas de 3% a 7%. Dada de forma abrupta, a má notícia vem acompanhada da notificação de que a nova alíquota de imposto pode chegar a 20% sobre o faturamento. Não satisfeita com a pura e simples quebra de contrato, a Receita avançou todos os sinais da convivência civilizada com o contribuinte ao noticiar, ainda, que essa nova alíquota terá efeito retroativo, passando a ser cobrada desde a data em que o contribuinte optou pelo Simples. ?Para arrecadar e fazer superávit, o governo está praticando pornografia fiscal explícita?, compara o ex-secretário da Receita Osires Lopes Filho.
Na vida real, são pessoas como o comerciante Wilson Vasconcelos, de Brasília, que ficaram desnorteadas com a reviravolta sem prévio aviso executada pela Receita. Dono da Braconnect Telecomunicações, ele se dedica a manutenção de computadores. Tinha 14 funcionários até a chegada da cartinha da Receita, em 27 de agosto. Sua primeira providência foi cortar três empregos para economizar o dinheiro que pagaria em salários para recolher o imposto a mais. Em seus cálculos, a conta do Leão vai subir de atuais R$ 900 para nada menos que R$ 4 mil. Do mesmo ramo de negócios, Túlio Sales trabalha sozinho, foi excluído do Simples e está sem rumo. ?Aos 50 anos de idade, se meu negócio naufragar com os impostos não terei para onde ir?. Noutro caso, a dona de uma pequena loja de restauração de obras de arte, a Jef/Tan, Tânia Piccini, teme até mesmo fechar seu próprio negócio. ?Meu imposto vai subir quase cinco vezes?, alarma-se ela. Hoje, Tânia paga R$ 68 e calcula que passará a recolher R$ 400 a cada mês. ?Mais um pouco e será melhor fechar o meu negócio?, afirma. Em São Paulo, a tradutora Marisa de Oliveira fatura cerca de R$ 36 mil anualmente. Ela está no Simples há três anos e, excluída agora, terá de desembolsar imediatamente R$ 8 mil para fazer frente aos recolhimentos retroativos. ?Não tenho esse dinheiro?, diz Marisa. ?Se sair do Simples vou fechar a empresa e apelar para a informalidade.?
Os técnicos da Receita alegam que a exclusão do Simples e a simultânea cobrança retroativa do imposto é possível porque muitos casos de inclusão no sistema estavam sub judice. Para o governo, os 80 mil contribuintes excluídos agora usufruíam do Simples de maneira irregular, praticando funções que não se enquadram nos critérios do regime especial de tributação. À DINHEIRO, o secretário-adjunto da Receita, Ricardo Pinheiro, não demonstrou qualquer sinal de piedade. Ele mesmo admitiu que muitas empresas poderão baixar suas portas em razão das novas regras. ?Existe um dilema: há males que vem para o bem ou há bens que vêm para males?, iniciou. ?Da nossa parte, resolvemos esse problema fazendo o que sabemos fazer, arrecadar.? De qualquer maneira, a luta entre os contribuintes e o leão parece estar apenas no começo. O presidente da Associação Nacional dos Sindicatos de Micro e Pequenas Empresas, Joseph Couri, reclamou formalmente da medida ao ministro da Fazenda, Antônio Palocci. ?Se a Receita errou, irá voltar atrás?, disse Palocci politicamente.
Neste terça 7, por intermediação do ministro, Couri terá audiência com o secretário da Receita, Jorge Rachid, para tentar reverter a situação. Irá alegar que, ao conceder CNPJs às empresas, o órgão arrecadador aceitou as inscrições dessas empresas no Simples e não pode mudar as regras com o jogo em andamento. De quebra, levará outra reivindicação dos contribuintes. ?As restituições do imposto de renda devem ser agilizadas, sob pena de desconfiarmos que também esses recursos estão sendo destinados às metas de superávit primário.? Atenderia, assim, pessoas como o advogado Luiz Carlos Svicero, o metalúrgico Sérgio Sales e projetista Licíneo Lima. Assalariados com imposto de renda descontado em folha de pagamento, até agora não viram a cor de suas restituições. ?É um direito do cidadão que todo o cidadão nunca sabe quando poderá contar?, diz o advogado Svicero. Até a semana passada a Receita havia restituído 2,1 milhões de contribuintes. Estavam na fila 4 milhões. Situações em que se vive num País que se obrigou a enxugar da economia R$ 54,2 bilhões este ano para pagar juros da dívida.