Não há quem não conheça o lado empreendedor de Juscelino Kubitschek. O ?presidente bossa-nova? fez Brasília em cinco anos, criou o Plano de Metas, abriu as portas do País a indústrias como a automobilística e transformou-se em símbolo do desenvolvimento brasileiro. O que não se conhecia é o outro lado empresarial de JK, como executivo na iniciativa privada. Essa atividade, revelada agora à DINHEIRO pela empresária portuguesa Fernanda Pires da Silva, ex-chefe de Juscelino, ficou muito tempo excluída de sua biografia. Trazida à tona, ajuda a desvendar mistérios até hoje existentes sobre um dos personagens mais marcantes da história recente do País. como os fatos que cercam a morte de JK, em 22 de agosto de 1976. Era justamente esse passado empresarial que o ex-presidente tentava apagar na fatídica viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, na Via Dutra, que redundou na sua morte. Naquele dia, JK disse aos fami-
liares e amigos que iria para Brasília ? e até mostrou um bilhete aéreo. Às 17h55 um ônibus comercial bateu atrás do Opala em que ele viaja-
va; desgovernado, o automóvel atravessou o canteiro central e bateu de frente numa carreta. Há quase três décadas os historiadores ten-
tam descobrir por que razão, afinal, o ex-presidente precisava ir se-
cretamente ao Rio? A versão mais difundida é a de que ele teria um encontro romântico com Lúcia Pedroso, sua suposta amante na ocasião. Mas era uma viagem de negócios. A revelação foi feita com exclusividade à DINHEIRO pela empresária mais rica de Portugal, Fer-
nanda Pires da Silva, uma senhora de 78 anos, com patrimônio pessoal superior a US$ 1 bilhão. Fernanda foi a fundadora do grupo Grão Pará, um colosso corporativo com atividades na área da cons-
trução pesada e do turismo. Foi ela quem contratou Juscelino, após o golpe militar de 1964, como executivo da empreiteira Edec, uma de suas 17 empresas. ?Juscelino tinha assuntos empresariais pendentes e não gostaria que ninguém soubesse?, assegura Fernanda, que só agora decidiu tocar pela primeira vez no assunto. ?Ele poderia até ter um encontro com a amante, mas não foi por essa razão que viajou secretamente.? Juscelino, de acordo com a empresária, teria uma reunião no Rio de Janeiro com o advogado português Adriano Moreira, que, na época, era executivo do grupo Grão Pará.

 

Mas, ainda assim, por que tanto mistério? Em 1976, ano em que morreu, JK tentava se viabilizar como candidato civil à sucessão do general Ernesto Geisel. Para isso, era necessário eliminar qualquer vestígio de que o ex-presidente, símbolo do otimismo e do desenvolvimento dos anos 50, teria recursos no exterior. ?O fato é que ele possuía ações da Edec, que eu própria doei?, revelou Fernanda à DINHEIRO. ?O objetivo da reunião com o advogado era retirar seu nome da sociedade.? Segundo Fernanda, o ex-presidente também precisava negociar uma dívida que deixou no Banco Português do Atlântico. Os avalistas eram a própria empresária e o industrial Lúcio Tomé Feeteira. Agravavam os problemas de JK o fato da ex-protetora Fernanda ter virado o principal alvo dos capitães que dois anos antes haviam tomado o poder com a Revolução dos Cravos. ?Eu representava o capitalismo que fazia sombra a eles?, justifica. ?Tiraram minhas empresas, vasculharam minha vida e até começaram a ir atrás da minha aliança com Juscelino.? Os militares investigavam os boatos de que JK seria testa-de-ferro de Fernanda num grande complexo hoteleiro perto de Setúbal, a 100 quilômetros de Lisboa. ?Estavam a inventar todo tipo de histórias contra ele?, diz a empresária.

Antes que fosse chamado a depor na investigação em Portugal, JK pediu ajuda ao amigo Adriano Moreira, que, além de advogado de Fernanda, havia sido ministro do Trabalho em seu país. Marcou um almoço sigiloso com Moreira para segunda-feira, 23 de agosto de 1976, no restaurante Albamar, no centro histórico do Rio de Janeiro. ?Tínhamos de fato um encontro marcado quando Juscelino morreu?, confirmou à DINHEIRO Moreira, que, aos 81 anos, é um renomado professor de Direito em Lisboa. Moreira estava ao lado do escritor Carlos Heitor Cony, que foi o biógrafo oficial de Juscelino, quando soube do acidente na Dutra. ?Juscelino acabara de cumprir os dez anos de cassação e não queria um novo escândalo com seu nome?, explica Cony. 

Hoje unanimidade nacional, Juscelino amargou por 12 anos acusações sobre sua honestidade. Foi cassado em 1964 sob a suspeita de favorecer empreiteiras na construção de Brasília ? especialmente a construtora do empresário Marco Paulo Rabello, de uma família de Diamantina, Minas Gerais, assim como JK. O ex-governador Carlos Lacerda chegou a declarar que JK teria acumulado a sétima maior fortuna do planeta. As informações sobre o exílio do ex-presidente, agora reveladas pela empresária Fernanda Pires da Silva, porém, indicam que JK viveu relativamente bem, mas não enriqueceu quando esteve fora do poder. Ele estava exilado em Paris quando Fernanda o convidou para se mudar para Lisboa. ?Mas o que eu vou fazer por lá??, questionou Juscelino. ?Trabalhar em nossos empreen-
dimentos?, propôs. O governo de Salazar já tinha negado um visto de permanência ao ex-presidente. Exigiam que ele tivesse um trabalho fixo, com carteira assinada. Na ocasião, Fernanda era dona de 12 empresas, com 3 mil empregados. ?Então eu lhe ofereci minha cadeira de presidente da construtora?, relata. JK aceitou de pronto. ?Ele não podia ficar parado, precisava trabalhar para viver.? Fernanda testemunhou os problemas financeiros de JK. ?O dinheiro que recebia como executivo dava para viver bem em Lisboa, mas não para fazer política no exílio?, prossegue. ?Ele precisava estar sempre viajando para encontros da oposição em Paris ou Nova York.? Ela chegou a avalizar um empréstimo bancário que JK tomou para montar sua casa em Lisboa ? essa era uma de suas pendências quando morreu. Tam-
bém viu quando o ex-presidente tomou por duas vezes empréstimos com o empresário brasileiro Sebastião Paes de Almeida, ex-ministro da Fazenda em seu governo. ?Juscelino contraiu dívidas porque ficou em Portugal mais tempo do que pretendia?, justifica a empresária.

Outro lado pouco conhecido do presidente é o de executivo de negócios. Entre outubro de 1966 e março de 1969, JK tocou a construção de um conjunto habitacional em Lisboa, o bairro de Odivelas, com 8 mil apartamentos. Também construiu um grande complexo turístico na ilha da Madeira. Por fim, participou das negociações para a construção do autódromo de Estoril, outra propriedade de Fernanda. Dinâmico e carismático, conversava com os peões e cobrava resultados. Fernanda mantinha cinco executivos em volta de JK. ?Ele era um grande empreendedor, gostava de visitar as obras, mas foi uma negação como administrador?, revela a empresária. ?Ele teve dificuldades de negociar bons contratos.? E prossegue: ?Eu o vi chorar muitas vezes, angustiado para voltar ao Brasil e enfrentar os militares. Mas um dia ele deixou tudo para trás e voltou ao para seu País para lutar pela democracia. Pediu sua demissão por carta, enviada de Nova York?. Quando Juscelino morreu, era Fernanda quem amargava o exílio no Rio de Janeiro, perseguida pela Revolução dos Cravos. Na ocasião, ela era confidente tanto de JK quanto da esposa Sara Kubitschek, sua amiga desde 1953. ?Sara sofria muito com o romance do marido com outra mulher?, revela. E Juscelino? ?Ora, morreu amargurado, querendo voltar à política.?

“DOEI AÇÕES A JK?

A empresária Fernanda Pires da Silva, que contratou JK durante o exílio, tem grandes projetos no Brasil. Ex-sócia de Roberto Marinho, da Globo, em fazendas de gado nelore, Fernanda sonha em viabilizar no País o maior complexo de ecoturismo do mundo, em parceria com o arquiteto Oscar Niemeyer. A seguir, sua entrevista à DINHEIRO.

DINHEIRO ? Por que Juscelino viajou secretamente para o Rio de Janeiro no dia em que morreu?
FERNANDA ? ?Ele teria de estar no Rio para discutir com seu advogado sua participação na minha construtora, a Edec. Ele temia ser acusado de ter dinheiro no exterior. Mas garanto que ele nada tinha.?

Juscelino foi seu sócio na construtora?
?A verdade é que, quando se exilou em Paris, ele não tinha dinheiro e precisava trabalhar para viver. Por isso o convidei para trabalhar comigo. Então deixei meu lugar na presidência da Edec para que ele assumisse o posto. A lei também exigia que, para ser administrador da empresa, ele precisava ter ações. Então lhe doei 100 ações, mas nunca foi um sócio efetivo.?

Ele morreu com dívidas pendentes?
?Sim, o salário que ganhava como executivo dava para comer e morar bem, mas não para fazer política no exílio. Foi então que
ele pediu um empréstimo no Banco Português do Atlântico. Recordo-me ainda quando ele tomou empréstimos com o empresário Sebas-
tião Paes de Almeida, seu ex-ministro da Fazenda. Ele foi a Portugal para que Juscelino assinasse os documentos. Lembro-me ter dito: ?Como é possível um ex-ministro seu emprestar-lhe dinheiro com juros de 8%??. Ao que ele me respondeu: ?Só conhecemos os homens quando caímos?.?

Como Juscelino se comportou como empresário?
?Era um homem dinâmico e carismático, que se comunicava com todos, principalmente os mais humildes, fato pouco freqüente
em Portugal. Todos queriam conhecê-lo, desprovidos de hostili-
dade, embora a imprensa na época o incriminasse injustamente
de cometer irregularidades. Mas devo também reconhecer que
ele era uma negação como empresário, tinha dificuldades de negociação de contratos.?

Qual a razão exata dele não ter dado certo como empresário?
?Eu o vi deitar lágrimas quando se sentia isolado, angustiado pelo desejo de voltar ao Brasil. Mais de uma vez isso aconteceu. Também vi Sara e sua filhas sofrerem muito com as acusações de que Juscelino teria enriquecido ilicitamente. Era esse o clima do seu exílio quando um dia ele foi fazer uma conferência em Nova York e de lá me escreveu uma carta particular que dizia: ?Estou disposto a tudo, mas não posso viver longe do meu País?. Então pediu demissão.?