RESUMO

• Lula não tem muitas opções: ou faz um ajuste fiscal sério ou finge que faz e compromete o êxito do seu governo
• Na sua mesa, há medidas concretas
• Previdência dos militares, despesas obrigatórias e abono salarial estão no cardápio para controlar os gastos e permitir a redução dos juros, do dólar e a volta dos investimentos

Revolução de 1930. As forças políticas reunidas em torno da chamada Aliança Liberal foram, sob a liderança de Getúlio Vargas, em direção a uma grande batalha em Itararé (SP). O problema é que não houve batalha nenhuma, pois o presidente Washington Luís foi deposto por seus próprios auxiliares, bem à moda brasileira.

Quase um século depois, uma cena parecida. Luiz Inácio Lula da Silva organiza suas forças para um conflito – bem menos violenta que a anterior, mas igualmente importante para o futuro do país. É preciso encarar que há um problema real nas contas públicas do Estado.

Soldados (ou ministros, neste caso) já estão a postos. As armas, substituídas por calculadoras, papel e caneta, também estão alinhadas para revisão dos gastos públicos. Só que, assim como a de Itararé, a luta contra o descontrole fiscal, marcada para acontecer no fim de outubro, não aconteceu.

Ainda que os Ministérios da Fazenda e do Planejamento confirmem a existência de uma estratégia de guerra para vencer a queda de braço, a ordem do comandante ainda não foi dada. Ao que tudo indica, o motivo da ausência no campo de batalha é que o presidente ainda não mostrou disposição para se empenhar nela.

Nas estimativas, obtidas pela DINHEIRO, os números podem ser grandiosos, modestos ou insuficientes, e variam entre R$ 30 bilhões e R$ 130 bilhões, a depender da disposição do governo em cortar na própria carne.

R$ 26 bi
é o valor, anual, de redução das despesas do Estado caso uma reforma administrativa saia do papel no governo Lula

A questão do ajuste fiscal, com o andamento atual da economia brasileira, deixou de ser um capricho do mercado e se tornou essencial para a execução do governo pelo qual o presidente Lula diz querer ser lembrado.

• Com o dólar encostando em R$ 6, os juros futuros chegando a 13% e incertezas no mundo crescendo, garantir uma estrutura fiscal sólida se tornou primordial para destravar a economia nacional.

• Na toada dessa retórica, até nomes antagônicos, como Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, alinharam os seus discursos: para destravar a economia, o governo precisa ajustar as contas públicas.

• Ao lado de Lula, os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) estão desde abril debruçados em soluções fiscais que mantenham o Arcabouço Fiscal em pé e garantam ser viável financeiramente a governabilidade do País em 2025.

• O primeiro passo, em julho, foi anunciar uma redução de gastos com a revisão de benefícios sociais e previdenciários pagos indevidamente. Com isso, a estimativa do governo é reduzir em R$ 26 bilhões as despesas de 2025. O problema é que, para conseguir manter as regras da Âncora Fiscal, mesmo que no limite, o País precisaria compensar algo entre R$ 80 bilhões e R$ 100 bilhões, a depender do andamento da arrecadação em 2024.

“O presidente Lula está totalmente comprometido com a questão fiscal, e as mudanças serão apresentadas em momento oportuno”
Fernando Haddad, ministro da Fazenda

Para chegar nesse número seria preciso desenhar ações de austeridade mais ambiciosas e criar um novo marco de parâmetros do tamanho do Estado. Nessa toada, foram desenhados três cenários de corte.

• Um amplo, com redução de R$ 130 bilhões,
• um mediano, em torno de R$ 42 bilhões,
• e um menor, com redução na casa dos R$ 34 bilhões.

A diferença entre eles é a força da revisão e o número de vespeiros a adentrar. No entendimento da Fazenda, algumas ações são necessárias para assegurar a retomada do grau de investimento até o fim do governo Lula, em 2026. Esse discurso tem sido encampado pela pasta de Haddad como forma de convencer o presidente Lula e o Congresso da necessidade dessa agenda, além de tentar blindar as medidas.

Apesar da urgência do ministro, que planejava apresentar as propostas ainda em outubro, ele afirmou que não há data para divulgação pública das ações e nem quais serão levadas adiante, mas assegurou o comprometimento do governo com as medidas.

“Estamos estudando, conversando com os outros ministérios e apresentando ao presidente”, disse. Um dos técnicos do ministério afirmou, em condição de anonimato, que apesar da pressa, é preciso reduzir os tabus sobre o assunto, focando na explicação pública das medidas.

Ao lado de Haddad na empreitada, a ministra Simone Tebet também tem trabalhado nos bastidores para melhorar a interlocução das propostas com o Legislativo e com a população. Segundo ela, a mensagem de Lula foi clara:

“Apresente-me o que precisamos fazer e explique, detalhe por detalhe, para todos. Queremos o melhor para o Brasil, mas todos precisam entender exatamente qual é o plano”, relembrou a ministra à DINHEIRO.

De acordo com ela, o corte também é importante para garantir que o Arcabouço Fiscal pare de pé a partir de 2026, quando se calcula que as despesas obrigatórias passarão a consumir uma parte maior do Orçamento.

“Precisamos encarar de forma séria a redução. Tudo que poderia ser feito pelo lado da receita, já aconteceu. Agora, precisamos discutir efetivamente o lado das despesas”

Quem também aguarda o pacote é o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Em reunião com investidores organizada pelo Deutsche Bank, em Londres, ele afirmou que o anúncio fiscal não tem relação mecânica com a política monetária, mas tem potencial de afetar prêmios de risco, taxas longas de juros e câmbio.

“Tem que ser algo que produza uma mudança nas expectativas que seja grande o suficiente para reverter o prêmio de risco, a expectativa de inflação e a curva longa de juros, e isso alimentaria a função de reação [do BC] de maneira positiva”

Campos Neto ponderou que vê a piora recente nos prêmios de risco mais relacionada ao tema fiscal, especialmente pela percepção do mercado sobre o afrouxamento das metas fiscais a partir de 2025 e questionamentos sobre a transparência das estatísticas do governo para as contas públicas.

“Parece haver um crescimento do prêmio de risco que está mais e mais associado a isso [fiscal], e para haver uma reversão é necessário criar uma percepção de que você fez algo que pode mudar a fotografia estruturalmente. Espero que o plano que será anunciado seja percebido como capaz de fazer isso”, afirmou.

O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, também entrou no coro dos que pressionam por cortes. Segundo ele, a sinalização da responsabilidade fiscal é importante para um governo desenvolvimentista. “Se queremos investir mais precisamos avaliar para onde o dinheiro do Orçamento tem ido. É uma substituição de recursos aplicados, e não um corte seco”, afirmou ele.

“Tudo que podia ser feito pelo lado da receita, já aconteceu. É hora de encarar com seriedade o lado das despesas do Estado”
Simone Tebet, ministra do planejamento

AS MEDIDAS

Para conseguir alcançar esse objetivo, são muitos os planos de ação.

● Um deles, e que tem sido alvo de fake news e causado turbulência dentro do governo, envolve mexer na multa de 40% do FGTS para demissões sem justa causa e no seguro-desemprego. Pela legislação atual, o empregador paga a multa em cima do tempo de contribuição, e cabe ao governo o custeio do seguro-desemprego. A ideia, então, é usar ao menos parte da multa na composição do seguro-desemprego. Em números absolutos, até agosto deste ano, o governo já havia pago R$ 52,4 bilhões com o benefício. Haveria uma redução entre R$ 5 bilhões e R$ 12 bilhões a depender da nova regra criada.

● O abono salarial é outro tema que envolve o trabalhador. A proposta é tornar o benefício direcionado, ou seja, retirar dos trabalhadores com renda maior e manter apenas os valores repassados aos que estiverem em vulnerabilidade social.

Esses tópicos são bastante sensíveis, em especial para o ministro do Trabalho, Luiz Marinho. O petista, considerado um dos mais fiéis ao presidente Lula, tem falado publicamente que tal discussão não existe, e tem tratado o assunto como fake news. Em entrevista recente, ele deu a entender que colocaria o cargo à disposição caso tais mudanças acontecessem à revelia de seu ministério. O entendimento de técnicos do Planejamento, no entanto, é que a sobreposição de benefícios acaba desestimulando a permanência no emprego, em especial no mercado de trabalho aquecido.

● Outro tópico que voltou a ganhar força na austeridade é a revisão do tamanho do Estado. As mudanças, se feitas de modo amplo, têm potencial de reduzir os gastos em R$ 26 bilhões ao ano, em especial com a revisão de cargos e salários, supressão dos supersalários em todas as esferas e novas regras para a previdência do servidor. O tema, no entanto, é visto como inviável no Legislativo, já que a alteração depende de mudanças na Constituição.

● Mais palatável, então, seria a revisão dos proventos, medida que poderia ser canetada através de uma MP. Nesse caso, a ideia é buscar um acordo no Congresso para aprovação do projeto que corta penduricalhos que fazem alguns servidores receberem mais de R$ 44 mil.

MILITARES

Os militares que estão na reserva ou reformados são hoje o grupo com o maior déficit anual por beneficiário (ou per capita), sendo 16 vezes maior do que o déficit do setor privado — aqueles que contribuem com o INSS.

• No setor privado, o déficit per capita é de R$ 9,4 mil.
• Entre servidores públicos civis, ele é de R$ 69 mil.
• E entre os militares, R$ 159 mil.
• Diante desse número, o governo calcula que gastará R$ 856 bilhões nas próximas décadas com o Sistema de Proteção das Forças Armadas, segundo o Relatório Contábil do Tesouro Nacional.
• Em 2023, as despesas com proteção social militar somaram R$ 58,8 bilhões, 85% mais que em 2014.

O gasto contratado nas próximas décadas para integrantes das Forças Armadas representa 60% do R$ 1,407 trilhão previsto em despesas com servidores civis, apesar de os militares representarem metade do contingente.

Hoje, há 757.959 funcionários públicos civis ativos no governo federal, contra 362.588 nas Forças Armadas, conforme dados do Portal da Transparência. Entre os inativos, são 707.902 civis aposentados ou pensionistas e 407.386 militares reservistas, reformados ou pensionistas.

Segundo análise do Tesouro, de agosto de 2024, os militares fazem parte de regime especial e não contribuem para arcar com despesas de quando passarão para a reserva, considerando que podem ser convocados em caso de guerra ou urgência. A contribuição é apenas para financiar seus pensionistas.

“Cabe destacar que, quanto aos militares das Forças Armadas, somente as despesas com pensões são consideradas previdenciárias, havendo receita de contribuições específicas para o seu custeio. As despesas com militares inativos não são classificadas como previdenciárias, mas como encargos especiais, não havendo contribuições dos militares e patronal para o seu custeio.”

DESVINCULAÇÃO

O ato de desvincular parte do Orçamento federal não é novidade por aqui. Um dos maiores defensores da medida, inclusive, é o ex-ministro da Economia Paulo Guedes. E agora o assunto voltou à tona.

Segundo o secretário-executivo do Ministério do Planejamento, Gustavo Guimarães, a medida seria uma forma de modernizar a gestão de recursos, e não significa que não haverá responsabilidade nos gastos. De acordo com ele, a rigidez atual do Orçamento, com cerca de 90% das despesas federais vinculadas a gastos obrigatórios, impede uma gestão eficiente dos recursos públicos e compromete o crescimento econômico.

Com aprovações de mais vínculo ano a ano, no ritmo atual, encerraremos a década com quase 95% do Orçamento carimbado. Em média, países desenvolvidos como Estados Unidos, Alemanha e Coreia do Sul possuem entre 40% e 60% dos recursos direcionados por lei.

“Essa falta de flexibilidade impede que o governo responda de forma eficaz às demandas e urgências do momento, comprometendo o investimento em áreas estratégicas e a implementação de políticas públicas mais dinâmicas”

Com muitas batalhas no front, e inimigos em todas as esferas do Poder e da sociedade civil, Lula precisará avaliar com frieza e pragmatismo como quer ser lembrado. Se será o presidente que enfrentou as distorções fiscais brasileiras ou o comandante de uma batalha que estava preparada, mas que nunca aconteceu.