10/12/2019 - 12:02
Agravada durante a ditadura militar (1964-1985) e pouco combatida durante os governos classificados como progressistas, a concentração de renda no Brasil não esteve nem perto dos padrões internacionais mais razoáveis ao longo das últimas décadas, diz o sociólogo Pedro Ferreira de Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Nenhum país é tão desigual e por tanto tempo sem ter se acostumado com isso”, diz ele, que foi o grande vencedor na categoria Livro do Ano do 61.º Prêmio Jabuti. Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil – 1926-2013 (editora Hucitec) traz uma análise dos dados do Imposto de Renda durante 87 anos – a maior série do tipo já publicada. Mostra que o 1% mais rico dos brasileiros manteve entre 25% e 30% da renda total desde então. Como comparação, na Alemanha a concentração é de cerca de 10%; no Chile, um pouco acima de 20%. A seguir, trechos da entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
Quando o Brasil, visto do topo, foi menos desigual?
Foi entre 1945 e o início dos anos 1960, quando o País estava saindo do Estado Novo. É uma época sobre a qual a gente não tinha muita informação. Nessa época, o 1% tinha 17% da renda total. Com o golpe militar, essa tendência tem uma reversão bastante surpreendente.
O que aconteceu durante o regime militar?
Foi um período de concentração, especialmente nos primeiros e nos últimos anos. O legado deixado pelos militares foi de crise, inflação e desigualdade alta. Logo nos primeiros anos de ditadura, economistas que estudavam o tema identificaram os brutais efeitos do ajuste econômico na distribuição de renda. No governo Castello Branco (1964-1967), foi lançado o Plano de Aceleração Econômica do Governo (Paeg), com várias medidas de arrocho. O salário mínimo caiu em termos reais e isso aumentou as margens de lucro das empresas. Também houve uma série de medidas posteriores, como o aperto monetário e uma política de concentração bancária, que ajudou a criar um sistema oligopolizado.
Mesmo durante o chamado “milagre econômico”?
Sim. O (presidente Emílio Garrastazu) Médici disse que a economia ia bem, mas o povo ia mal. O bolo cresceu, mas nunca chegou a ser dividido. Crescimento e desigualdade não andam necessariamente juntos. Depois, o governo de (Ernesto) Geisel reconheceu que a desigualdade era um problema forte.
Como é em outros países?
O padrão do mundo, pensando na renda monetária, é que o 1% detenha entre 5% e 15% da renda. Algo em torno de 10% seria razoável, próximo à realidade da Alemanha ou da França.
Os governos mais à esquerda a partir de 2003 conseguiram reduzir a pobreza e a desigualdade?
O País sempre mostrou uma dificuldade muito grande em reduzir a concentração pelo topo. Entre 2000 e 2015, a pobreza diminuiu, todo mundo melhorou de vida em termos absolutos, mas a queda da desigualdade foi bem menor do que a gente imaginava. Embora os mais pobres tenham melhorado de vida, os mais ricos também se protegeram. Alguma distribuição houve, mas ela se deu pelas classes intermediárias.
Qual o efeito disso?
O Brasil se acostumou a ser desigual. Nenhum país é tão desigual por tanto tempo sem ter se acostumado com isso. E nenhuma mudança vai acontecer sem resistência. A diferença de renda entre grupos sociais acaba se refletindo na capacidade de influenciar na pauta política e gera uma dinâmica muito problemática. Mas é importante debater saídas. Não se trata de nivelar arbitrariamente para que todo mundo seja exatamente igual, a discussão é como aproximar o Brasil de padrões internacionais, desses países que os brasileiros admiram.
A desigualdade é um tema que tem aparecido mais agora?
É natural que, saindo de uma recessão, as pessoas comecem a discutir que País a gente quer ser. A concentração de renda entre os mais ricos ganha força pela crise estrutural do Estado, porque, no fundo, discutir a concentração de renda é discutir como financiar os serviços públicos.
Uma saída seria simplesmente cobrar mais impostos dos ricos?
A política mais intuitiva e mais fácil do ponto de vista técnico – que não resolveria tudo, mas poderia ajudar – é olhar para a estrutura da arrecadação de impostos. Não estou discutindo a carga tributária, mas a necessidade de deixar de arrecadar com bens e serviços e mais na renda e no patrimônio. Não seria nenhuma revolução, mas nos empurraria para um lugar menos desigual.
A redução da desigualdade é uma meta ainda distante?
Não conheço casos documentados de redução da desigualdade em outros países, nessa magnitude, sem que tivessem passado por tragédias ou grandes crises. O desafio é inventar um meio pacífico para que isso ocorra.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.