05/08/2011 - 6:00
DINHEIRO ? Por que empresas como Petrobras, Fiat e Itaú estão contratando um filósofo, como o sr., para debater sobre ética?
JEAN BARTOLI ? Ética é a reflexão sobre o ethos, o que em grego quer dizer viver juntos. E viver juntos tem a ver com o relacionamento organizacional. Meu trabalho é refletir sobre essa convivência. Os gregos consideravam a filosofia um exercício espiritual. É pensar para tomar decisões. É pensar não só com a cuca, mas com sentimentos. E para, então, julgar fatos, acontecimentos.
DINHEIRO ? Nós paramos de pensar?
BARTOLI ? Não paramos de pensar, mas acho que nas empresas, nas universidades e nas igrejas é um exercício necessário atualmente. As pessoas estão esperando alguém que dê as dicas. Acho que é por isso que existe uma abundância de gurus para todas as áreas. As pessoas querem terceirizar o ato de pensar.
DINHEIRO ? Nossa sociedade está se acostumando a terceirizar quase tudo, inclusive o pensar?
BARTOLI ? Exatamente. Mas todas as pessoas são inteligentes. O que varia é a forma de inteligência. Todas as pessoas têm capacidade de pensar. A questão é se ela assume essa capacidade de pensar. Porque pensar, entre outras coisas, traz angústia. Principalmente quando se vê ao seu redor, como no contexto atual, uma crise, uma falta de ética, no mundo todo.
DINHEIRO ? Todos têm capacidade de pensar no outro, como sugere a ética?
BARTOLI ? Capacidade, têm. O problema é saber se quer.
DINHEIRO ? Então, reformulando: todo mundo quer pensar no outro?
BARTOLI ? Quando uma pessoa dá uma cotovelada no outro sem querer e não pede desculpas, mostra que ele não está muito preocupado com o que acontece ao redor dele. A pergunta ética fundamental é: será que estou disposto a pensar no outro para conviver com ele, e eventualmente criar vínculos com ele? Veja, nós somos uma sociedade muito conectada, mas não temos vínculos.
DINHEIRO ? As empresas, quando chamam um especialista em ética, estão pensando em seus interlocutores ? sejam funcionários, clientes ou o mercado?
BARTOLI ? As empresas me chamam não como alguém que poderá ensinar o que fazer, embora haja quem tenha essa expectativa. Chamam para discutir em função dos códigos internos de ética que balizam os comportamentos. E isso é uma ilusão. Código de ética é um ponto de chegada, não é um ponto de partida. Num exercício de convivência, há um determinado momento em que surge a necessidade de verbalizar de que modo é o nosso jeito de viver junto. Código é uma trilha que você dá, mas que vai levar as pessoas a prestar atenção no que, de fato, acontece. Aí, o pior que pode acontecer é seu código falar uma coisa e seu comportamento ser diferente. Nesse caso, um código de ética aumenta o cinismo.
DINHEIRO ? A sociedade cobra coerência entre o que se fala e o que se faz?
BARTOLI ? A vida cobra coerência. Às vezes, é melhor fazer opções mais conscientes, ainda que dolorosas. Mas essa pergunta, sobre se a sociedade cobra coerência, não tem uma resposta única. E, neste país, que eu adoro, a sociedade não cobra como deveria.
“A limpeza nos Transportes poderia ser um marco”
DINHEIRO ? Dez anos atrás o mundo vivia a crise da WorldComm e da Enron, e agora a Inglaterra está às voltas com um caso como o do jornal News of the World, que envolveu diversos expoentes do setor público e privado. E o Brasil, como o sr. vê?
BARTOLI ? Vejo um cenário favorável. Quaisquer que sejam as motivações da presidente Dilma, temos um processo de limpeza acontecendo nos órgãos do governo. Isso é inegável. O que me assusta é que muitos formadores de opinião questionam, diante desse processo, a governabilidade da presidente. Em vez de dar apoio ao processo.
DINHEIRO ? A falta de reação diante da corrupção tem a ver com um certo deslumbramento com a economia?
BARTOLI ? Corrupção é uma palavra forte, que confundimos com suborno. Suborno é um ato ilícito. Mas a corrupção significa desintegrar. Casos como o da WorldComm mostram quando a sociedade se desintegra totalmente, num estado de violência pura.
DINHEIRO ? Os escândalos recentes seriam um indício de que há muita coisa podre no Brasil?
BARTOLI ? Uma pergunta que homens de boa vontade ? estejam eles nas universidades, nas igrejas, ou nas empresas ? têm de fazer não é se a sociedade está podre, mas o que há de podre aqui. Quais são as forças de ?morte?, como dizia o papa João Paulo II. Quais são os germes de nascimento na nossa cultura, e quais são de morte? Isso não tem a ver com a situação da economia. Esse pensamento no coletivo existia, inclusive nos campos de concentração. Mesmo com fome, havia pessoas que davam sua comida para quem estava mais faminto.
DINHEIRO ? A discussão sobre ética vem quando nos reconhecemos com uma autoestima melhor, com a economia a todo vapor?
BARTOLI ? Essa pergunta pode ser feita de outro modo. Por que um país rico demorou tanto para atender às necessidades básicas? Havia riqueza, mas não chegava para os demais. É preciso começar a discutir isso, com humildade.
Luciano Coutinho, presidente do BNDES
DINHEIRO ? O que a empresa pode fazer por esse processo ético?
BARTOLI ? Algumas coisas que se esperam das empresas não fazem parte do papel delas. O que se pede a elas é que façam bem o que se propõem a fazer, e que sejam honestas com os stakeholders.
DINHEIRO ? A empresa tem responsabilidade pela corrupção no poder público?
BARTOLI ? Mas é claro. Ela corrompe. O papel da companhia não é fazer grandes proclamações sobre qualidade de vida ou responsabilidade social. Isso é coisa para inglês ver. O que precisa é que a empresa cumpra seu papel com honestidade, em todos os sentidos. Que seja honesta com seus clientes, que pare de gastar fortunas com propagandas muitas vezes mentirosas. Que seja honesta com seus funcionários, com seus acionistas, que não prometa o que não consegue cumprir. O papel da empresa não é reclamar da corrupção: o papel é não corromper. Tampouco cabe a ela assumir a vanguarda de um processo político. Quem deve fazer isso é a sociedade. O momento atual de limpeza no Ministério dos Transportes poderia ser um marco para a sociedade dizer: ?Começou, agora continua.?
DINHEIRO ? Há algo nas relações de trabalho que denota falta de ética?
BARTOLI ? Questões como a pressão para uma carga de trabalho longa. Veja, não é algo que será resolvido dentro da empresa. Tanto que as pessoas mudam de empresa e encontram problema semelhante no novo emprego. Trata-se de um problema político e social. Que tipo de empresa nós queremos? Vão dizer que é um problema no mundo todo. É verdade! Há gente se suicidando nas empresas chinesas. Está começando a haver revolta social por isso. As pessoas ainda acham que vida profissional é puxar o tapete do colega. É preciso se reconstruir juntos. É um processo difícil, mas, se não for enfrentado, teremos uma catástrofe. E já há sinais de que ela está a caminho.
DINHEIRO ? Quais sinais?
BARTOLI ? Veja, dívida americana, inadimplência dos países europeus. A questão nuclear, a droga. Amy Winehouse é um espelho. Não consigo tratar do tema ético sem pensar na violência. Na sua ausência, crescem os germes de morte. Não se pode tratar a ética com conceitos marcados, algo com regras do que deve ser assim ou assado.
DINHEIRO ? Quais são os germes da morte dentro de empresas?
BARTOLI ? Germe de morte, em qualquer convivência, é a perda da relação de confiança. Isso é a morte da organização. E aí é confiança entre pares, acionistas, clientes.
DINHEIRO ? Confiança, a priori, é um senso comum, todos reconhecem esse conceito?
BARTOLI ? Mas, por incrível que pareça, a pessoa, quando entra numa empresa, acha que não pode confiar em ninguém. Porque não quer correr riscos. Qualquer relação de confiança é correr risco. A primeira base da confiança é aceitar a possibilidade de ser traído, pois se não admitir essa hipótese você fica na defensiva. Como trabalhar numa empresa, se não houver relações de confiança?
DINHEIRO ? O que fundamenta a confiança?
BARTOLI ? Pactos honestos que numa empresa começam ainda na fase do planejamento.
DINHEIRO ? Seria o caso do Pão de Açúcar com o Casino?
BARTOLI ? Prefiro não falar sobre isso porque é evidente. A discussão ética não se resume a julgar tal caso. Até porque esse assunto já foi julgado. Veja, o País dá sinais de que a opinião pública tem peso se ela se organizar. Todo mundo achava que essa questão do Pão de Açúcar estaria resolvida, que seria concretizada com o apoio do BNDES. Mas o banco e os autores da proposta da fusão tiveram de voltar atrás. Isso mostra que é um momento muito favorável para a sociedade começar a se mexer.