05/02/2010 - 3:41
Todo ano ele faz tudo sempre igual. A mesma camiseta de gola alta e manga comprida preta, a calça jeans surrada, o tênis New Balance cinza. O mesmo palco, as mesmas luzes, a mesma plateia que o ovaciona e um produto na mão. Esta é a liturgia do profeta da inovação Steve Jobs. Eis o paradoxo da Apple, considerada a empresa mais inovadora da atualidade, mas cuja máquina de marketing vem repetindo a mesma estratégia há anos. Quando subiu ao palco na quarta-feira 27, para anunciar o iPad, um minicomputador com tela sensível ao toque, sem mouse ou teclado, Jobs repetiu este ritual. Só que desta vez, o produto foi recebido com mais ceticismo. As ações da Apple despencaram mais de 8% no dia seguinte ao anúncio, o que não aconteceu em outros eventos da companhia, como o lançamento do iPhone (confira gráfico ao lado). Apesar dessa recepção morna do mercado, Jobs foi saudado, mais uma vez, em termos bíblicos. ?A última vez que houve tamanha excitação por causa de uma tábua (tablet, em inglês), ela tinha alguns mandamentos gravados nela?, escreveu com rara ironia e precisão o jornal norte-americano The Wall Street Journal, comparando o criador da Apple a Moisés. A revista inglesa The Economist, dedicou sua capa ao iPad, com o título ?O livro de Jobs?, numa referência a Jó e a também um dos alvos do produto ? o iPad será um concorrente direto do Kindle.
Nos últimos anos, Steve Jobs vem lapidando quase que à perfeição a estratégia cultuada, mas também conservadora, de lançamento dos seus novos produtos. O absoluto silêncio é sua maior arma. David Yoffie, professor de negócios de Harvard, estimou que nos meses entre o anúncio e a venda do primeiro iPhone em 2007, a Apple conseguiu mais de US$ 400 milhões em propaganda gratuita, apenas se mantendo completamente calada, alimentando o frenesi da mídia mundial. Algo bastante parecido ? e em uma escala ainda maior ? foi se desenhando nos últimos meses em torno do tablet da Apple. A máquina de marketing da companhia, cuja logomarca é uma maçã, tem uma forma de funcionar que não se altera. O impressionante é que, até agora, tem dado sempre certo. Mas conseguirá, desta vez, fazer o iPad decolar?
?Vejo muito potencial neste produto e não tenho dúvida de que muitos concorrentes irão ser lançados antes do final deste ano?, disse à DINHEIRO Rob Enderle, presidente da consultoria norte-americana Enderle Group. A lógica do marketing da Apple é baseada em algumas regras que contrariam tudo o que é considerado padrão na indústria do Vale do Silício, região dos Estados Unidos, na Califórnia, onde estão localizadas as principais companhias de tecnologia. A primeira delas é o segredo. A empresa guarda seus produtos sob o mais absoluto sigilo. Os funcionários são avisados que não podem comentar os projetos em que estão trabalhando com suas próprias famílias. Os times de hardware e software ficam em prédios separados. E os crachás eletrônicos impedem acessos a determinadas áreas do escritório. Os concorrentes têm táticas diferentes. A Intel, por exemplo, publica regularmente o calendário de lançamento de seus produtos. A Microsoft programa todos os seus lançamentos e cria uma série de fatos até a data do lançamento, antecipando boa parte dos recursos.
O segundo pilar da estratégia da Apple é o controle. O hardware e o software são proprietários. Isso quer dizer que só funcionam em um produto da Apple. Quer rodar o sistema operacional Mac OS? Compre um Mac. O iPod é umbilicalmente ligado à loja online iTunes, que, por sua vez, só pode ser acessada via software. Sabe de quem? Da própria Apple. E, por fim, existe o fator Jobs. Centralizador, ele se preocupa com os mínimos detalhes do produto, microgerenciando tudo. Muitos o consideram tirânico. Seu desempenho no palco também é essencial para o sucesso do produto. Quem não se lembra dele tirando de um envelope o MacBook Air, o então notebook mais fino do mundo? Durante o lançamento do iPad, usou várias frases de efeito, como ?produto mágico e revolucionário? ou ?ele é muito mais íntimo do que um notebook, muito mais eficiente que um smartphone?.
O tablet da Apple não é o primeiro de sua categoria, mas isso também não é um problema. O iPod não inaugurou o mercado de tocadores de música digital, tampouco o iPhone construiu o segmento de smartphones. Ambos, no entanto, tinham características e recursos que os tornavam atraentes. Entre eles, um design sofisticado e uma loja online com músicas e aplicativos. O iPad apesar das suas limitações, aposta em múltiplas funções para atrair o público. Ele é ao mesmo tempo um dispositivo que acessa internet, permite ver vídeos, ouvir músicas, receber e enviar e-mails, organizar fotos, jogar games e ? ufa ? um leitor de livros eletrônicos. O iPad é também um marco da convergência, que editoras de livros, revistas e jornais, além de estúdios de cinema e emissoras de televisão, esperam que possa esquentar a distribuição digital ? e paga ? de seu conteúdo, assim como o iPod o fez com a música. A expectativa gerada, desta vez, parece ter sido alta demais. Os comentários gerais eram de que o iPad era apenas um iPhone gigante. Os usuários fanáticos começaram a fazer listas sobre os itens que faltavam no aparelho. As mais frequentes referiam-se à ausência de uma câmera e capacidade de poder fazer mais de uma aplicação funcionar ao mesmo tempo, chamada de multitarefa. O porta-voz da Apple Brasil, Fábio Ribeiro, garantiu que pelo menos dá para ouvir música e ler um livro ao mesmo tempo. A máquina de marketing da Apple está à prova, embora tenha feito tudo igual novamente.