Tudo caminhava para um processo eleitoral tranqüilo, ao fim do qual o presidente Lula sairia consagrado pelo voto com direito a mais quatro anos no poder. Diante da enfática demonstração de confiança, Lula iniciaria seu segundo mandato em céu de brigadeiro, com plenas condições de costurar uma ampla coalizão política, que lhe permitiria apressar a aprovação das reformas tão necessárias à retomada do crescimento do País. Porém, a política é como nuvem, como ensinavam as raposas mineiras. Ganha contornos diferentes a cada instante. Foi isso que se viu na semana passada. O cenário róseo que se apresentava ao futuro governante desmoronou com a velocidade de um raio. E quem vestir a faixa presidencial a partir de 1º de janeiro vai enfrentar dias de forte turbulência. Nada será como antes na vida nacional depois da prisão no Hotel Ibis, em São Paulo, de dois petistas, Gedimar Passos e Valdebran Padilha, com R$ 1,7 milhão, em dólares e reais, destinados ao pagamento de um dossiê de acusações contra o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra. O escândalo atingiu o terceiro andar do Palácio do Planalto e, em apenas três dias, ceifou a cabeça de oito militantes do PT – o mais graduado deles, o deputado federal Ricardo Berzoini, presidente do partido e coordenador da campanha de reeleição. A crise política ganhou tal dimensão que a faixa presidencial, seja quem for o eleito, se tornará um fardo, com um Congresso hostil e refratário a qualquer tipo de composição. Nesse clima de guerra, serão remotíssimas as chances de aprovação das reformas política, fiscal, da Previdência e trabalhista. E o Brasil continuará a crescer em passo de cágado.

 

Preocupado com o impacto negativo na reta final das eleições, o presidente Lula procurou agir rápido e descartou-se de todos os envolvidos. Em entrevista na quinta 21, classificou o dossiê de ?abominável e imoral?, afirmou que ?essas coisas só podem ocorrer porque as pessoas são insanas? e lamentou: ?Mexer com bandido não dá certo em lugar nenhum do mundo?. Entende-se a decepção de Lula. A mais nova trapalhada de fiéis colaboradores do presidente veio se somar a tantas outras que já deixaram pelo meio do caminho outros companheiros graduados. Mas, dessa vez, fez lembrar antecedentes históricos de triste memória. Um dos acusados é Freud Godoy, segurança pessoal de Lula e assessor especial da Presidência da República. Apontado como mandante da compra do dossiê, Godoy cuida dos imóveis de Lula em São Bernardo do Campo e presta serviços ao gabinete da primeira-dama Marisa Letícia. Pela proximidade com o presidente Lula, a iniciativa de Godoy foi logo comparada à de Gregório Fortunato, o ?anjo da guarda? de Getúlio Vargas que decidiu eliminar o udenista Carlos Lacerda para agradar o chefe. No célebre atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, Lacerda foi ferido e morreu o major Rubem Vaz, da Aeronáutica. Godoy, da mesma forma, teria idealizado o ataque a José Serra para marcar pontos com Lula, pela tentativa de mudar os rumos da eleição em São Paulo e levar o petista Aloizio Mercadante ao segundo turno. Além delembrar o episódio que levou Vargas ao suicídio, o malfadado dossiê negociado com os donos da Planam, Darci Vedoim e seu filho Luiz Antônio, os principais corruptores da Máfia dos Sanguessugas, trouxe à baila a conspiração do Partido Republicano contra os democratas, que deu no impeachment do presidente Richard Nixon. A compra do dossiê dos Vedoim seria a versão nacional do caso Watergate, a invasão da sede do Partido Democrata, em Washington, na calada da noite, atrás de documentos comprometedores. Nixon se reelegeu porém foi apeado da Casa Branca antes de completar o mandato. Na opinião do governador de Minas, Aécio Neves, ?esse episódio vai ficar conhecido na política brasileira como o maior tiro no pé já dado por um partido político ou por um governo?.

 

As investigações apontam que Freud Godoy agiu em conjunto com a área de inteligência da campanha de Lula, chefiada por Jorge Lorenzetti, o churrasqueiro oficial do presidente. Ricardo Berzoini, numa patética entrevista de oito minutos na segunda 18, tentou negar as evidências mas não resistiu ao efeito dominó e foi substituído na coordenação da campanha por Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais. O Palácio do Planalto, na verdade, fez o que podia para estancar a sangria. Mas o mal está feito. E os reflexos na economia já foram sentidos. O risco-Brasil disparou para 242 pontos, o dólar subiu para R$ 2,208, a maior cotação desde julho, e a Bolsa de Valores de São Paulo acumulou perda de 4% em apenas dois dias, com alto volume de negócios. Tudo por culpa da incerteza política. ?Diante das crises, é natural que os recursos saiam dos mercados emergentes e se direcionem para títulos do mercado americano, em busca de maior segurança?, confirma o economista Silvio Campos Neto, do Banco Schahin. As perspectivas viraram de ponta-cabeça. E o otimismo virou fumaça. Investidores e empresários passaram a trabalhar com um horizonte de forte instabilidade. Acreditam que, daqui para frente, o embate entre o PT e a oposição liderada pelo PSDB só vai se acirrar. E também que existe a possibilidade de um segundo turno cruento entre Lula e Alckmin. O ambiente de negociação deu lugar a um clima de confronto, em prejuízo das reformas e do crescimento econômico. O próximo presidente corre o risco de assumir com o Congresso em pé de guerra. O que seria lamentável para o País, na opinião do presidente da Fiesp, Paulo Skaff. ? Seja quem for o eleito, será preciso vontade política para tratar das reformas básicas, caso contrário continuaremos patinando num crescimento medíocre?, adverte Skaff.

No Palácio do Planalto, a reação negativa dos mercados ainda não assusta. Há esperança em retomar o controle da situação. A menos de dez dias da eleição, considera-se bastante provável que, apesar da lambança petista, o presidente Lula consiga se eleger no primeiro turno, o que levantaria o moral das hordas governistas. Considera-se também acertada a decisão de cortar na carne sem maior enfrentamento com o PSDB. Prevaleceu a posição do ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, no sentido de manter abertas as pontes lançadas em direção ao tucanato. Ao oferecer cabeças coroadas, como a de Ricardo Berzoini, o governo Lula mostrou que não está disposto a atiçar a oposição. Ao contrário, gostaria que, após a punição dos conspiradores, os ânimos serenassem de ambos os lados. Genro continua a apostar num governo de coalizão e, nos bastidores do Palácio, antecipa-se que um prócer tucano, de perfil semelhante ao jurista Miguel Reale Jr., poderá ser convidado a participar de um futuro governo Lula. Resta saber se o PSDB, caso saia derrotado em 1º de outubro, vai concordar em passar uma borracha no dossiê dos Vedoim e fumar o cachimbo da paz. Ao mesmo tempo em que descartam a possibilidade de impeachment, os tucanos apressaram-se em ingressar no TSE com pedido de impugnação da candidatura de Lula. E a investigação sobre o complô petista foi aberta pelo corregedor do Tribunal, ministro César Asfor Rocha. A Justiça agora seguirá seu caminho, independentemente das conveniências políticas. O impeachment pode ser pedido por entidades de classe e o processo de impugnação se arrastará pelo próximo ano, o que certamente vai fragilizar o governo e aumentar ainda mais as incertezas da economia.

A VOLTA DO HOMEM-BOMBA

Nessa reta final da campanha presidencial, em que o presidente Lula se vê diante de mais um terremoto político, um velho fantasma voltou a assombrar o PT. É Roberto Jefferson, o homem-bomba. Jefferson acaba de lançar, pela editora Topbooks, o livro ?Nervos de Aço?, escrito com a colaboração do jornalista Luciano Trigo. Numa narrativa fluente, ele oferece a interpretação mais coerente para a maior crise política da história recente ? até porque contada por um de seus protagonistas, que não omite nem os próprios pecados. Na gênese do escândalo, Jefferson revela por que fechou um acordo de R$ 20 milhões entre o PTB e o PT, diz como foi traído por José Dirceu e ensina como os cargos públicos nas estatais são usados para arrecadar recursos para os partidos políticos. O ex-deputado conta ainda como uma nomeação, a de Francisco Spirandel, do PTB, para o lugar de Dimas Toledo, em Furnas, poderia ter evitado a crise. Isso porque o cargo de Dimas, de onde seria possível arrecadar R$ 3 milhões por mês, é um dos mais rentáveis da República. Mas Jefferson perdeu a batalha e acabou sendo vítima de uma trama urdida nos porões da Casa Civil, no caso ?Maurício Marinho?, que pretendia apontá-lo como responsável por toda a corrupção nos Correios. Deu no que deu. Jefferson abriu o bico, concedeu duas entrevistas explosivas à Folha de S.Paulo, e a secretária Fernanda Karina Somaggio mapeou, na DINHEIRO, todo o funcionamento do chamado ?valerioduto?. Jefferson revela ainda o teor de uma conversa privada com o senador Jorge Bornhausen, do PFL, no auge da crise do mensalão. Este lhe disse que tucanos e pefelistas desistiram de buscar o impeachment de Lula não por falta de motivos jurídicos ou de ressonância popular, mas por um cálculo político: acreditavam que, se o vice José Alencar assumisse o poder, seria um candidato imbatível nas eleições deste ano. No fim do livro, Jefferson explica de forma precisa por que perdeu o mandato. ?Fui cassado por cometer o delito de abrir o esgoto a céu aberto, e deixar a substância pestilenta vir à superfície. Quanto mais mexeram, pior ficou o odor?, disse ele. ?E o que fiz foi tido como imperdoável aos olhos dos meus pares, pois transgredi a lei do silêncio, a omertà que impera na política brasileira?.

Por Leonardo Attuch