Os enochatos compõem uma categoria peculiar de seres humanos ? são as pessoas que, do alto da torre de marfim, cospem conhecimentos e arrogância a respeito de vinhos. Reproduzem, em relação à bebida, postura semelhante à da elite que o antropólogo Claude Lévi-Strauss encontrou em São Paulo no início dos anos 30 do século passado, descrita no clássico Tristes Trópicos: ?Uma fauna displicente e mais exótica do que ela mesmo se imaginava?. Vinho, em outras palavras, é assunto saboroso demais para cair em paladares tolos. O jornalista inglês Lawrence Osborne escreveu O Connaisseur Acidental, sucesso nos Estados Unidos e lançado no Brasil, esta semana, pela Editora Intrínseca. O livro é um divertido e obrigatório relato das entranhas do mundo das uvas. Parece, numa primeira olhada, um ataque encorpado contra os petulantes ? é, a rigor, uma homenagem àqueles que, calmos e seguros, exibem taças com modéstia. Àqueles que, munidos de conhecimento e estudo, por força de seguidas degustações, aprendem a diferenciar o bom do ruim, o acre do doce. ?O vinho não se presta a exibicionismos?, diz Arthur Azevedo, diretor-executivo da reputada Associação Brasileira de Sommeliers. ?Ele não pode servir para instalar as pessoas em posições superiores, como se fosse uma arma de diferenciação social?.

Osborne faz um passeio pelos vinhedos americanos e europeus. Um de seus personagens, Adriano Terni, um italiano da costa adriática amante das canções e da poesia pop de Bob Dylan, odeia tudo na atividade ligada ao vinho, exceto o próprio vinho. Terni não tem paciência com o que ele classifica de ?masturbação mental pseudo-intelectual sobre vinho?. Irônico ao estilo de Dylan, fabrica pelo menos uma garrafa deliberadamente preparada para os americanos, com sabor e perfume de frutas vermelhas e tabaco. ?Esse é o cheiro que os bebedores dos Estados Unidos adoram sentir?, resume. Por meio de personagens como Terni, Osborne tenta compreender como uma cultura milenar, por conta de exigências econômicas (o vinho movimenta US$ 50 bilhões), acabou sendo atrelada, recentemente, a um único homem, a um único nariz, a um único gosto: o do crítico Robert Parker. Nada contra as raras narinas de Parker, postas no seguro a US$ 1 milhão. Mas, vale reforçar, ele virou um ditador de Baco, especialmente no chamado Novo Mundo. Os produtores em busca de lucros passaram a trabalhar as safras de acordo com o gosto de Parker ? como se o paladar desse especialista fosse o gosto dos outros. ?O desempenho de Parker é fenomenal, mas o modo como ele impõe suas avaliações é um enigma?, diz Azevedo, da ABS. É, na verdade, um fenômeno semelhante à influência de estilistas nas passarelas da alta costura ou, hoje, de Ferran Adrià entre os adeptos da desconstrução culinária.

Um dos produtores americanos ouvidos por Osborne tem uma regra na ponta da língua para definir quem determina o ritmo do mercado. Funciona assim: ?Na categoria acima de US$ 100, Parker manda. É a sua turma do hotel Ritz-Carlton de homens brancos de meia-idade. Entre US$ 40 e US$ 50, é a revista Wine Spectator. Mas as mulheres de fato compram 65% da totalidade dos vinhos e são muito mais pão-duras em relação ao que pagam?. Azevedo, da ABS, fervoroso defensor da humildade diante das grandes safras, gosta de lembrar a frase de um vendedor tradicional de Nova York, instigado a explicar a curva financeira de seu próspero negócio. Ela apenas confirma as fascinantes descobertas relatadas em O Connaisseur acidental. ?Quando Parker dá nota acima de 90, em 100 possíveis, não consigo comprar. Quando ele dá notas abaixo de 90, não consigo vender.? O mistério é escapar das imposições de Parker, respeitá-lo, mas entender que saborear um bom vinho é algo que pode ser aprendido, com diversão e prazer, desde que a auto-suficiência de supostos especialistas vá ao lixo junto com a rolha.

TRECHOS


“Poucas coisas nos deixam mais inseguros em relação ao paladar do que o vinho. Cerca de 75 mil vinhos diferentes fabricados hoje no mundo sustentam uma indústria de 50 bilhões de dólares, mas só há um punhado de especialistas autênticos para nos ajudar a classificá-los”

“Minha língua é igual à de uma vaca? De um tamanduá? Eu lambo as frutas como um chimpanzé? Mas, afinal de contas, essas perguntas são quixotescas… Para descobrir meu próprio gosto em termos de vinho, eu teria que jogar fora os livros e a ciência…”

“Apesar de sua universalidade biológica, o gosto não possui uma verdade subjetiva mensurável, uma essência ? como observou Susan Sontag, ?não tem um sistema nem provas?. Só pode ser desenvolvido pela ação, o que vale dizer, pelo próprio prazer.”