O mais caro, mais polêmico e mais ambicioso projeto da era FHC saiu finalmente do papel. Na escaldante tarde de quinta-feira 25, em Manaus, o presidente Fernando Henrique inaugurou oficialmente o Sistema de Vigilância da Amazônia, o Sivam. O sistema de monitoramento aéreo e terrestre irá vigiar a Amazônia Legal Brasileira, que representa cerca de 60% do território nacional. Orçado em U$ 1,4 bilhão, o Sivam foi a maior obra dos oito anos do governo FHC. Paradoxalmente, foi seu primeiro escândalo, revelado em 1995 pela revista Istoé — em função da descoberta de grampos telefônicos no Palácio do Planalto — e também o último. O contrato da maior parte do pacote tecnológico foi disputado entre a Raytheon, dos Estados Unidos, e a Thomson, da França, e sempre esteve cercado de intrigas e jogo de influência. Na terça-feira 23, dois dias antes da inauguração de Manaus, novas denúncias de espionagem e vazamento de informações surgiram, com indícios de favorecimento aos americanos. Durante a solenidade em Manaus, FHC esforçou-se em rebater as acusações. ?Todos tiveram que agüentar muitas críticas precipitadas. Mas a pele vira couro. E mesmo sendo couro, dói?, disse. Todo o alto comando da Força Aérea e o primeiro escalão de FHC estiveram presentes na comemoração. ?De nada adiantaram as acusações inverídicas e as críticas injustas a esse estratégico projeto?, reforçou o ministro da Defesa, Geraldo Quintão. Na véspera da inauguração, em Anápolis, Goiás, o presidente não deixou de fora da festa um velho clichê: batizou com champanhe um dos aviões fabricados pela Embraer.

Apesar das desconfianças, o Sivam é um projeto que impressiona. Nada de envergadura similar havia sido feito no mundo. Afinal, trata-se de uma área de 5,2 milhões de quilômetros quadrados, que atinge nove Estados do País. Todos os números são superlativos: foram instalados 10 radares meteorológicos, 200 plataformas de coletas de dados ambientais em rios, 300 equipamentos portáteis de comunicação e 914 estações de telecomunicação via satélite. Só nas obras de construção chegaram a trabalhar 8 mil pessoas simultaneamente. O objetivo de toda essa parafernália tecnológica é captar qualquer atividade estranha na região, como extração ilegal de madeira ou invasão do espaço aéreo. Um dos maiores benefícios seria a preservação da biodiversidade nacional. Durante a implantação do projeto, os técnicos viram de perto a biopirataria que corre solta pela região. Dezenas de cientistas estrangeiros foram encontrados vivendo nas reservas indígenas, onde pesquisam plantas e ervas, encontradas unicamente na Amazônia, e que depois se transformam em lucrativos remédios.

O que torna o projeto Sivam tão singular não é apenas sua extensão territorial, mas também seu lado épico. Diversas localidades cobertas são de dificílimo acesso. Neste exato momento, por exemplo, uma equipe de técnicos está levando uma tonelada de equipamentos no lombo de uma dezena de mulas para a aldeia indígena de Wai-Wai, interior de Roraima. Serão 14 dias de viagem em mata fechada. Ou seja, é a mais avançada tecnologia em contato com um dos mais rudimentares meios de transporte que o homem conhece. ?Uma coisa é instalar radares na França ou na Inglaterra. A outra é fazer isso no meio da selva?, diz o brigadeiro Teomar Fonseca Quírico, presidente da comissão de implantação do Sivam. O feito brasileiro é tão importante que especialistas da Austrália, Suécia e Índia já vieram conhecer a tecnologia desenvolvida aqui. Países fronteiriços da região, como Colômbia e Venezuela, têm interesse em adotar o sistema de monitoramento. E contatos preliminares estão ocorrendo com a África, para onde o Brasil poderia vender a exportar a tecnologia. ?O Sivam abriu as portas para que vendêssemos quatro aviões na Grécia e dois no México?, disse Maurício Botelho, presidente da Embraer, à DINHEIRO. ?É provável que o projeto seja adotado também no Sul do País?, diz Tarcísio Takashi Muta, diretor-superintendente da Atech, empresa que junto com a Raytheon desenvolveu os softwares e sistemas.

Hoje, a inteligência do Sivam está 100% em mãos nacionais. Foi a Atech que absorveu a tecnologia criada pelos americanos. Essa era uma das principais exigências dos militares, que temiam ver a soberania nacional ameaçada pela dependência tecnológica. ?Soberania não tem preço?, diz o brigadeiro Quírico. Ao que tudo indica, o próximo grande projeto da Aeronáutica brasileira também deverá ser norteado pela transferência de conhecimento. A renovação da frota da Força Aérea Brasileira, projeto cujo valor poderá somar US$ 8 bilhões, seis vezes o preço do sistema de vigilância amazônico, começará a ser licitada até o fim do ano. Isso se tudo der certo. Com as novas denúncias em relação ao Sivam, os militares estão novamente na incômoda posição de prestar contas à sociedade. É certo que, assim como o valor, a vigilância sobre o projeto também será multiplicada. Até para que se evitem os erros do passado.