Pouco antes de morrer, o escritor tcheco Franz Kafka (1883?1924), considerado um dos principais ícones da literatura moderna, revelou apenas um desejo: o de que todos os seus trabalhos ainda não publicados fossem destruídos. Felizmente, seu editor e biógrafo, o também tcheco Max Brod (1884?1968), não acatou o pedido final. E, graças a essa desobediência, o mundo conheceu as obras O Processo (1925) e O Castelo (1926), dois monumentos literários de Kafka, publicados após a sua morte.
 

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Franz Kafka: antes de morrer, o escritor pediu que todos os seus livros ainda não publicados  fossem destruídos

 

Agora, a posse de outros manuscritos inéditos, parte do material que esteve nas mãos de Brod, é motivo de uma disputa judicial digna dos enredos do absurdo que Kafka propõe em suas obras. É que, ao morrer, Brod deixou os manuscritos de herança à sua secretária, Esther Hoffe, que, por sua vez, os entregou às suas filhas, Hava e Ruth Hoffe. Acontece, entretanto, que Brod pediu em testamento que o material fosse doado para arquivos públicos e citou a Biblioteca Nacional de Israel. Como não recebeu as obras, a biblioteca resolveu processar as herdeiras e tentar obter as relíquias da literatura na Justiça.

?A Biblioteca Nacional de Israel acredita que o legado de Kafka deveria ser universal?, disse à DINHEIRO Meir Heller, advogado da biblioteca.
 

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Em busca das relíquias:  a Biblioteca Nacional de Israel (à dir.) entrou na Justiça para ter as obras

 

Não se sabe, ao certo, onde a família Hoffe escondeu os manuscritos, mas acredita-se que eles estejam em cofres de bancos suíços. O fato é que o tribunal de Tel-Aviv decidirá o futuro das peças em abril. ?Pela lei, a obra de Kafka já caiu em domínio público. O que está em jogo nesse caso é o direito particular versus o direito da sociedade à cultura. A Justiça deve considerar o valor histórico e o benefício social nesse caso?, aponta Carla Dalio, advogada especializada em direito autoral.
 

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Obra-Prima Max Brod, editor de Kafka, desobedeceu o pedido dele e publicou O Processo

 

Não é a primeira vez que as mulheres da família Hoffe se envolvem em confusões devido à posse dos manuscritos. Em 1974, foram vendidos por 90 mil marcos (cerca de 46 mil euros nos valores atuais) um total de 22 cartas e dez cartões-postais, correspondências entre Kafka e Brod, e outros documentos. Em 1985 a família Hoffe também se desfez, por 11 mil marcos (5,6 mil euros) de uma carta que o autor enviou a sua noiva, Felice Bauer.

Em 1988, foi a vez do texto original de O Processo, arrematado por cerca de US$ 2 milhões, pelo Museu de Literatura Moderna de Marbach, na Alemanha, em um leilão da Sotheby?s, de Londres. ?A família Hoffe já se desfez de muito do que foi deixado. É pouco provável que os manuscritos restantes sejam importantes?, diz Modesto Carone, um dos maiores especialistas em Kafka do Brasil. Pode ser. Mas, se essa tese tivesse sido seguida à risca por Brod, o mundo não teria conhecido as grandes obras de Kafka.

Além de uma riqueza literária ímpar, seus livros geraram milhões. Só as vendas de O Processo pela Cia das Letras, que publica os livros de Kafka desde 1997, já renderam mais de R$ 1 milhão à editora. Mais: em 1962, Orson Welles, diretor de Cidadão Kane (1941), gastou US$ 1,2 milhão para adquirir os direitos autorais e fazer a versão em filme. Nos dias de hoje, diz o economista Leonardo Santos, da consultoria Austin, essa quantia equivaleria a US$ 8,7 milhões.

?Em algumas legislações, como a brasileira, o autor tem direito de manter sua obra inédita. Por outro lado, se os herdeiros descumpriram as determinações testamentárias, a biblioteca se vê no direito de reclamar os bens?, aponta Sergio Seleme, professor de direito civil da Universidade Federal do Paraná.

Enquanto isso, Hava Hoffe reclama que não tem acesso ao dinheiro que sua mãe ganhou com as vendas dos manuscritos, pois a Justiça não emitiu um certificado de herança. Já para Israel, possuir os manuscritos é uma questão de honra. É que quando os alemães invadiram a então Tchecoslováquia, em 1939, Brod fugiu para Tel-Aviv levando todos os textos de Kafka. Os israelenses não se conformam, até hoje, com a fuga das obras, atualmente em cofres suíços e outra parte na Inglaterra ? em 1968, Brod doou os manuscritos de América e O Castelo à Universidade de Oxford.

?Kafka se sentia esmagado pela máquina da burocracia. Tinha a visão de um mundo caótico e sem sentido?, explica Eloa Heise, professora de literatura alemã da Faculdade de Letras da USP. O destino de sua obra poderia ser uma continuação de sua escrita.