08/10/2003 - 7:00
DINHEIRO ? Como o sr. avalia a política econômica nos nove primeiros meses de governo Lula?
PAULO GUEDES ? Até agora só se evitou um desastre. O ministro Antônio Palocci representa o plano de sobrevivência. Há mérito nisso, mas ainda é muito pouco diante do que o Brasil precisa. Alguns dizem que o Brasil fez muito, mas isso não é verdade. Fez muito em relação à Argentina. Mas fez nada em relação à Rússia ou à Coréia do Sul.
DINHEIRO ? O que falta para ir além?
GUEDES ? A ópera da retomada necessita de dois movimentos. O primeiro é caminhar em direção à fronteira de possibilidade de produção. É o que estão fazendo países como a China, que no passado se desviaram muito da eficiência de mercado. A China
hoje cresce valendo-se de recursos já existentes. O Brasil já deveria ter detonado esse movimento. O País poderia expandir sua economia 7% durante quatro ou cinco anos apenas removendo distorções internas. O segundo movimento é mais estrutural. Depende de educação, do marco regulatório e da incorporação de novas tecnologias, por exemplo.
DINHEIRO ? A que distorções o sr. se refere?
GUEDES ? Temos 40 milhões de pessoas sem carteira de
trabalho. É um exército de excluídos porque o nosso sistema trabalhista é da época da Segunda Guerra Mundial. Os encargos chegam a 100%. Eu tenho uma proposta prática. O governo anunciaria um plano de cinco anos. No primeiro, reduziria encargos em 20%. Se a arrecadação aumentasse, graças à ampliação da base, o governo reduziria mais 20%, e assim por diante. Isso pode ser feito tanto na reforma trabalhista como na reforma tributária. Com o anúncio disso, já conseguiríamos antecipar os investimentos. O Imposto de Renda na Rússia é de 13% e eles estão voando. Ampliam a base, com alíquotas mais baixas.
DINHEIRO ? O governo alega que não pode perder receita.
GUEDES ? Claro. A grande dificuldade é essa, mas a minha proposta suaviza esse temor. Eu lhe pergunto: quem foi o ministro da Fazenda do segundo mandato do Fernando Henrique? Foi o Everardo Maciel, da Receita, e não o Pedro Malan. Como o Malan, no primeiro mandato, permitiu um enorme endividamento do Estado, no segundo a gestão caiu no colo do Everardo e do Fundo Monetário Internacional, para que o País pagasse suas dívidas. Passaram a cobrar 37% do PIB em impostos. Pagar as dívidas é razoável, mas não sem uma dinâmica de crescimento, porque chega o momento em que as nações se desesperam, como aconteceu na Argentina.
DINHEIRO ? Que balanço o sr. faz da
era FHC?
GUEDES ? Houve um equívoco financeiro dramático, com uma combinação de âncora cambial, juro alto e déficit fiscal. Isso engoliu todos os ganhos da privatização. Hoje se faz a pergunta: como é que nós vendemos tudo e estamos devendo muito mais? A resposta está nesse equívoco. No primeiro dia do governo FHC, a participação do governo nas estatais valia US$ 55 bilhões. A dívida pública interna era de US$ 56 bilhões. Daria para trocar seis por meia dúzia. Outra coisa: por que o Fernando Henrique não institucionalizou o Banco Central independente? Porque ele quis operar a reeleição dele, no primeiro mandato. Queimamos US$ 50 bilhões nessa brincadeira. E o pior é que, no segundo mandato, os tucanos tentaram
chantagear o País contra o Lula, dizendo que íamos quebrar.
DINHEIRO ? Em nome do bom senso?
GUEDES ? Pois é. Os tucanos se autodefiniram como o paradigma de racionalidade, a partir do qual nós julgamos se o PT é apto ou não a governar. Mas vamos analisar o paradigma tucano. A política fiscal foi totalmente deficitária no primeiro mandato. A Lei de Responsabilidade Fiscal só veio no segundo, assim como a flutuação cambial. Eles endividaram o País loucamente e passaram a cobrar impostos também loucamente. Onde é que isso é paradigma de racionalidade? Eu diria que é paradigma de irracionalidade.
“Palocci é a estratégia de sobrevivência. Ele só evitou a catástrofe”
DINHEIRO ? Hoje, parece que todos sempre foram a favor do câmbio livre.
GUEDES ? A desvalorização não foi um ato de vontade. Aconteceu depois que o governo queimou US$ 50 bilhões em três meses. Aquilo foi um maçarico na região glútea do governo.
DINHEIRO ? Por que o Brasil, depois de tantas tentativas,
continua atolado?
GUEDES ? Dois países, Chile e China, fizeram primeiro a ?perestroika?, a abertura econômica. Só depois fizeram a ?glasnost?, a abertura política. O Brasil e a Rússia fizeram primeiro a glasnost e só depois a perestroika. Os anos 80, por exemplo, foram anos de desordem financeira e populismo. Nos anos 90, houve a tentativa de ajuste, mas com o equívoco financeiro que eu já mencionei. Nosso grande desafio hoje é democratizar os gastos públicos e, certamente, desprivatizar o Estado. O BNDES, por exemplo, sempre foi conhecido como o Recreio dos Bandeirantes dos empresários paulistas. Muitos empresários se fizeram graças aos incentivos fiscais federais, como os da Zona Franca de Manaus. Outra grande missão é descentralizar os gastos públicos.
DINHEIRO ? O governo não fez o contrário nos últimos anos, centralizando ainda mais as receitas da União?
GUEDES ? Fez, porque o governo federal gosta de cooptar os governadores para aprovar seus projetos. O correto teria sido transferir receitas e responsabilidades aos Estados e municípios. Mas nem essa descentralização é mais possível, porque, se for feita, a União quebra. Veja o caso de São Paulo. O Fernando Henrique assumiu a dívida paulista e a federalizou. Em vez de fazer o movimento contrário, descentralizando os recursos, nós empilhamos todos os buracos e esqueletos no governo federal. Chegamos ao paradoxo. Os Estados e municípios, que deveriam ser agentes
da ação social, porque estão mais próximos da população, hoje
não têm recursos.
DINHEIRO ? O sr. acredita que o PT irá reformar o Estado?
GUEDES ? Não sei, porque, na prática, nós só trocamos de socialistas. Na última eleição, tínhamos quatro social-democratas: um reformista, que era o Ciro Gomes, o sindicalista, que era o Lula, um populista, o Anthony Garotinho, e o ortodoxo, que era o José Serra. Toda vez que um país só tem candidatos da mesma corrente, eu fico preocupado. Meu exemplo é a Argentina, onde todos são peronistas. Não é por mera coincidência que os argentinos foram para o buraco. Sem alternativas, o espectro de raciocínio fica muito estreito. A social-democracia só sobrevive onde ela pode contrastar com a liberal-democracia. É o caso do Chile, onde o Eduardo Frei e o Ricardo Lagos colheram o crescimento plantado pelos liberais.
“Não faz sentido algum o governo cortejar um ditador como o Fidel Castro”
DINHEIRO ? Mas a gestão econômica não vem sendo ortodoxa?
GUEDES ? Eu acho que o PT tem legitimidade para reformar o Estado brasileiro e ficar 20 anos no poder. Mas, para isso, é preciso coragem. O que o Lula quer é o mesmo que os liberais sempre quiseram. Os liberais acreditam que a economia de mercado não só gera muita riqueza, como também destrói qualquer tipo de privilégio.
DINHEIRO ? Além de cortes de impostos e encargos trabalhistas, o que mais o sr. propõe?
GUEDES ? O governo deveria ter uma meta de reservas internacionais. Hoje todo mundo brinca de câmbio flutuante, mas o desafio é flutuar com uma volatilidade mais baixa. O Japão, por exemplo, tem câmbio livre, mas conta com US$ 500 bilhões em reservas. O iene flutua, mas flutua pouco. A China tem US$ 300 bilhões. A Coréia do Sul tem US$ 150 bilhões. A Rússia tem US$ 65 bilhões. O Brasil, por sua vez, é o sujeito que foi pelado para o clube da flutuação. Bateu na porta e disse: ?Eu sou sócio?. Olharam de lado, riram pelos cantos e nos deixaram entrar. Se o Brasil anunciar que, até 2008, vai comprar US$ 10 bilhões por ano, para formar reservas, acaba a tal vulnerabilidade externa.
DINHEIRO ? Isso dispensaria um novo acordo com o FMI?
GUEDES ? Claro. Eu, se fosse o Lula, diria hoje: ?O FMI pode ir embora porque eu sei o que tenho que fazer?. O FMI chegou para valer ao Brasil em 1982, quando a minha filha estava nascendo. Hoje ela tem 21 anos e o FMI continua no Brasil. Estou absolutamente convencido de que esse crédito oficial nos faz muito mal. Sem o FMI, o Fernando Henrique teria nos endividado menos. Mas, infelizmente, talvez não tivesse tido seu segundo mandato. É um detalhe, né? Temos que falar a verdade. O segundo mandato dele foi totalmente inútil. Jogou nosso tempo fora.
DINHEIRO ? O FMI não acaba sendo uma muleta para um
governo indeciso?
GUEDES ? Um social-democrata geralmente gosta de andar com um guarda-costas, que é o FMI. Um liberal não precisa de nada disso. Nós às vezes nos encantamos com a social-democracia, mas é preciso lembrar que eles não criaram nenhum emprego na Europa, nos últimos vinte anos. No mesmo período, os Estados Unidos criaram 17 milhões de empregos.
DINHEIRO ? Como se resolverá o nó da dívida pública?
GUEDES ? Se o governo Lula fizesse reformas na direção do desenvolvimento, ele teria até liberdade para exigir uma renegociação das dívidas interna e externa. Daria um certo mal-estar, mas a turma teria que aceitar. As pessoas olhariam lá na frente e vislumbrariam um crescimento tão grande, mas tão grande, que não haveria crise. Mas não sei Lula será liberal o bastante.
DINHEIRO ? Por que faltam economistas liberais no Brasil?
GUEDES ? Não temos essa tradição. O Brasil é prisioneiro de duas culturas disformes. A da direita, que é patrimonialista, predatória, fisiológica e corrupta. E a da esquerda, que é alienada em relação às possibilidades de criação de riqueza da cultura ocidental. Eles olham para os Estados Unidos e, em vez de perceberem o dinamismo do sistema econômico, miram só nos aspectos ruins, como a busca da hegemonia. E, depois disso, ainda cultivam um ditador. Não faz sentido algum cortejar um ditador como o Fidel Castro.
DINHEIRO ? O PT já vem sendo criticado por ser conservador demais. O sr. acredita numa gestão ainda mais liberal?
GUEDES ? Não muito. O PT teria que atacar essa nossa elite, que é predatória. Os liberais são contra todos os tipos de privilégios e isenções, do tipo Sudam, Sudene ou Zona Franca. O fato é que a liberal-democracia terá que renascer no Brasil, porque a esquerda está falhando. Os quadros econômicos do PMDB do José Sarney eram da esquerda, da Unicamp. No governo Fernando Collor, não consigo encaixar a Zélia Cardoso de Mello e o Antônio Kandir entre os liberais. E na era FHC, havia social-democratas, como o Pedro Malan e o Edmar Bacha. Não existem liberais democratas autênticos no Brasil. A espécie em extinção era o Roberto Campos. Eu sou o elo perdido. Dá uma solidão tremenda.