Pelo menos 110 mil soldados russos teriam ficado gravemente feridos na guerra na Ucrânia, muitos sofreram amputações. Sentindo-se abandonados pelas autoridades, eles revelam o que vivenciam na volta à pátria.Desde que invadiu a Ucrânia, há quase três anos, a Rússia não fornece números exatos sobre o número de soldados mortos ou feridos. Uma vez que informações desse tipo são consideradas confidenciais, as autoridades de Moscou têm feito apenas declarações esporádicas a respeito de possíveis baixas.

Em 2023, o vice-ministro do Trabalho e Proteção Social, Alexei Vovchenko, declarou que 54% de todos os feridos sofreram sequelas graves.: 80% deles teve membros inferiores, os restantes, membros superiores.

No fim de 2024, a vice-ministra da Defesa, Anna Tsivilyova, mencionada pela mídia russa não censurada como sobrinha do presidente Vladimir Putin, estimou o número total de feridos em 110 mil.

Feridos precisam voltar ao front?

No início de 2025, diversos vídeos foram compartilhados na rede social russa VKontakte, mostrando comandantes do Exército russo enviando soldados feridos para lutar novamente. Num deles, dos militares que estavam numa floresta, vários usavam muletas.

Em outro vídeo, um policial militar confronta dois homens camuflados, um deles apoiado numa muleta. Ele os ameaça com violência sexual. Posteriormente, as autoridades confirmaram o caso, e o soldado que torturara seus companheiros com um cassetete e uma arma de choque foi preso. Descobriu-se que os feridos eram soldados contratados que haviam se queixado de seus comandantes por quererem mandá-los de volta às frentes de batalha.

Num pronunciamento, Tsivilyova admitiu que há tentativas de levar os feridos de volta à guerra o mais rápido possível. O retorno de cerca de 96% dos feridos ao front seria possível “graças à modernização dos hospitais de campanha”. Essa abordagem pode indicar falta de contingente nas frentes de batalha e grandes baixas.

“A minha estimativa é de que cerca de seis em cada dez feridos sofreram lesões graves”, sugere um ex-soldado russo que prefere não se identificar. Ele foi recentemente dispensado do Exército devido a ferimentos – de que tipo, ela não revela, por motivos de segurança. “O principal é que os meus braços e pernas estão intactos”, diz o homem que aguarda por um pagamento único de vários milhões de rublos.

Ele reclama que sua aposentadoria por invalidez, de 22 mil rublos (R$ 1.260), é baixa: “Fiquei incapacitado de trabalhar aos 36 anos de idade e perdi a minha saúde, então o que devo fazer? Servi o meu país e não me arrependo.”

O ex-combatente suspeita que o Exército russo envie soldados feridos para a frente de batalha a fim de puni-los por crimes como o tráfico de drogas ou por fingirem lesões.

Quanto os feridos recebem?

Na mesma rede social VKontakte, há reclamações de que os médicos minimizam os ferimentos. Alguns protestam contra o mais recente decreto presidencial que reduz os pagamentos únicos por ferimentos leves de 3 milhões para 1 milhão de rublos.

Um soldado chamado Oleg escreveu que os médicos haviam inicialmente classificado seu ferimento como moderado: “De repente, no dia em que recebi alta, se tornou um ferimento leve. Disseram que agora havia novas listas e categorias.”

Ex-mercenários do exército privado Grupo Wagner, uma das unidades mais brutais que lutaram ao lado da Rússia na Ucrânia, reclamam que não são reconhecidos pelo Estado. Um deles desabafa no VKontakte que não consegue mais andar devido às lesões e está “entregue à própria sorte”. Ele recebe uma pensão do Estado por invalidez de cerca de 10 mil rublos, mas nada do Exército.

Alguns dos comentários apontam o alto custo das próteses. Uma usuária da cidade de Perm, a mais de mil quilômetros a leste de Moscou, reclama que uma prótese de qualidade custa 5 milhões de rublo, e seu irmão, que lutou pela Rússia, não como custear uma. Ela também se queixa que os benefícios sociais só cobrem uma pequena parte dos custos. Além disso, várias regiões estão relatando escassez de alguns tipos de próteses devido às sanções contra Moscou, o que resulta em preços mais altos e prazos de espera mais longos.

Como é o retorno à vida civil?

Um dos maiores problemas do período pós-guerra é a reintegração de militares com portadores de deficiência à sociedade, afirma a historiadora Aglaya Asheshova, da Biblioteca Universitária de Línguas e Civilizações de Paris. Especialista em sociedades pós-guerra, principalmente da Rússia e França, ela acredita que, praticamente em todos os países, grande parte dos soldados inválidos tende a viver isolada.

Asheshova suspeita que o Estado russo possa transferir o cuidado dessas ex-combatentes às diferentes regiões, o que, devido aos recursos locais limitados, dificultaria ainda mais seu retorno à sociedade.

Portadores de deficiência são frequentemente confrontados com o fato de os empregadores não quererem contratá-los, enfatiza o ex-oficial russo Nikita Tretyakov em seu canal no Telegram. Ele descreve o caso de um colega gravemente ferido que procurava trabalho. De acordo com Tretyakov, o cargo de consultor de vendas lhe foi recusado por ressalvas quanto a seu estado psíquico, devido à participação na guerra na Ucrânia.

Como os veteranos são vistos na Rússia

De acordo com a socióloga Anna Kuleshova, há diferentes posturas em relação aos veteranos na sociedade russa. Por um lado, isso se deve à polarização política. Por outro, há diferenças regionais.

“Os veteranos de guerra nem sempre são vistos como heróis, mas sim com desconfiança devido aos casos – conhecidos por meio do noticiário ou por experiência própria – em que militares empregaram violência contra civis.”

Um psiquiatra que atua na Rússia e, por isso, deseja permanecer anônimo, observa que, apesar dos ferimentos, a maioria dos que lutaram acredita que a guerra é legítima. Trata-se de um mecanismo de defesa da própria psique que pode ser observado em veteranos de diversas guerras.

“Isso permite que eles atuem de forma eficaz e sobrevivam a condições extremas.” Mas o retorno à vida civil é sempre um processo difícil,também por os homens não se sentirem mais tão necessários quanto eram na frente de batalha.