Operação desastrosa que levou policiais britânicos a confundirem brasileiro com terrorista procurado em Londres completa 20 anos, sem responsabilização pela morte. Veja o que aconteceu com os envolvidos no caso.Há exatos 20 anos, em 22 de julho de 2005, agentes da polícia de Londres matavam por engano o imigrante brasileiro Jean Charles de Menezes. Foi a culminação de uma operação antiterrorismo marcada por erros de planejamento e estratégia, falta de comunicação e acusações de acobertamento.

No dia 7 do mesmo mês, a capital britânica havia sido palco de uma série de atentados terroristas que resultaram na morte de 52 pessoas. Então, duas semanas depois, uma nova tentativa de ataque ocorreu sem deixar vítimas e a polícia lançou uma caçada aos terroristas. Seria nessa teia de tensão que resultaria na morte de Jean Charles, então com 27 anos.

Passadas duas décadas, ninguém foi responsabilizado pelo caso. Veja a seguir o que aconteceu com os principais personagens da tragédia:

Osman Hussain, o verdadeiro terrorista

O etíope naturalizado britânico Hamdi Adus Isaac, também conhecido como Osman Hussain, era o homem que a polícia realmente procurava em 22 de julho de 2005. No dia anterior, o radical islâmico havia participado ao lado de outros cinco homens da tentativa de plantar bombas em estações de metrô e num ônibus em Londres.

Os explosivos, porém, não detonaram como esperado e não deixaram vítimas. A polícia acabou encontrando na mochila deixada por Hussain uma carteirinha de academia de ginástica na qual constava seu nome e endereço. Ele morava no mesmo bloco de apartamentos que Jean Charles de Menezes. Foi o início da cadeia de erros que levou a polícia a confundir Jean Charles com Hussain e a passar a seguir erroneamente o brasileiro quando ele saiu para trabalhar, até que ele fosse morto após embarcar num vagão de metrô na estação londrina de Stockwell.

Em 22 de julho, quando Jean Charles foi morto, Hussain já estava a caminho de Roma, onde morava um de seus irmãos. Ele acabou sendo preso por autoridades italianas uma semana depois. No mesmo ano, ele foi extraditado de volta ao Reino Unido.

Em 2007, Hussain foi condenado a uma pena mínima de 40 anos de prisão. Atualmente, ele segue preso. Sua esposa e cunhada, acusadas de ajudarem na fuga e omitirem informações sobre o planejamento do ataque, também foram sentenciadas a penas de dez anos a onze anos de prisão.

Cressida Dick, a comandante da operação que matou Jean Charles

A policial Cressida Dick foi a comandante da operação de 22 de julho que resultou na morte de Jean Charles. A partir do centro de operações da Polícia Metropolitana de Londres (também conhecida como Scotland Yard), ela esteve envolvida no planejamento e execução das ações dos agentes que seguiram Jean Charles. Foi ela que deu a ordem para que o brasileiro fosse impedido de embarcar no metrô. A operação prosseguiu mesmo com dúvidas sobre a identidade do suspeito.

Em 2007, dois anos após o caso, Dick afirmou que sua ordem de “parar” Jean Charles não significava necessariamente uma autorização para abater Jean Charles. No entanto, os policiais armados que seguiam o brasileiro estavam operando sob um protocolo que incluía autorização tácita para atirar em suspeitos de terrorismo suicida sem aviso.

Em 2008, ela defendeu suas ações. “Se você me perguntar se acho que alguém fez algo errado ou sem razão na operação, eu acho que não foi o caso”, disse à época.

A morte trágica de Jean Charles nunca prejudicou a carreira de Dick.

Um inquérito apontou uma série de falhas na operação, mas Dick foi inocentada de qualquer responsabilidade e continuou a ser promovida.

Posteriormente, ela foi responsável por chefiar uma unidade de combate ao terrorismo e atuou na segurança dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. Em 2017, foi promovida ao posto máximo da polícia de Londres: comissária-chefe, tornando-se a primeira mulher assumidamente homossexual a ocupar o cargo. À época, o prefeito Sadiq Khan saudou a promoção como parte de um “dia histórico” em Londres.

A família de Jean Charles criticou a promoção. “Não se pode esperar que aceitemos que o cargo máximo da polícia do país, um posto onde se espera os mais elevados padrões de profissionalismo […] seja preenchido por alguém que claramente falhou em preencher esse requisito”, declarou a família em 2017.

E controvérsias continuariam a seguir Dick. Em 2022, ela deixou o posto após sofrer desgaste em meio a denúncias de prevalência de racismo, xenofobia e sexismo entre membros da força policial. Também contribuíram para sua queda a revelação de que um policial havia estuprado e assassinado uma mulher de 33 anos em Londres, além de acusações de que a Scotland Yard não teria se empenhado em investigar festas ilegais promovidas pelo então premiê Boris Johnson durante o lockdown imposto na pandemia de covid-19.

Após deixar a polícia, Dick passou a atuar como palestrante.

Ian Blair, comissário-chefe da polícia de Londres

Chefe da polícia de Londres à época da morte de Jean Charles, Blair se tornou à época o principal personagem das acusações de acobertamento e propagação de informações inverídicas sobre a morte.

Blair assumiu a chefia da polícia de Londres em fevereiro de 2005, meses antes dos atentados.

Em 22 de julho, após atiradores da polícia matarem Jean Charles no metrô, Blair foi a público no mesmo dia afirmar, sem identificar quem havia morrido, que a ação tinha relação com uma “operação antiterrorista”. Ele também disse que o alvo havia se recusado a obedecer ordens dos policiais. Nas horas seguintes, Blair continuaria a alimentar um cenário no qual o comportamento do suspeito contribuiu para sua morte.

Paralelamente, a polícia passou a divulgar comunicados afirmando que o homem estava usando “roupas volumosas” e agindo de maneira “suspeita” e que o alvo havia sido “advertido” pelos atiradores. Reportagens na imprensa também relataram e que ele teria “pulado a catraca” ao entrar na estação.

Eram mentiras. Jean Charles não estava usando roupas volumosas e havia pago sua passagem na catraca. Todas as testemunhas no vagão do metrô negaram que os policiais se identificaram antes de atirar.

Só no dia seguinte, 23 de julho, Blair foi novamente a público declarar que a polícia havia matado um homem por engano. No entanto, surgiriam suspeitas de que Blair já estava informado sobre evidências quando inicialmente propagou as primeiras versões. Blair negou e disse que só foi informado no dia seguinte.

Ele também foi acusado de inicialmente tentar bloquear um relatório da Comissão Independente de Queixas contra a Polícia Britânica (IPCC, na sigla em inglês), a corregedoria policial. O bloqueio inicial, segundo investigadores, permitiu que policiais pudessem adulterar provas do caso e criar um cenário para a propagação de boatos.

Em agosto de 2005, o vazamento para a imprensa de um relatório preliminar da IPCC que listou os erros da operação e contradizia versões propagadas pela polícia sobre o comportamento de Jean Charles arranhou a imagem de Blair. No entanto, ele permaneceu no cargo e não foi processado.

Blair só deixou o cargo em 2008, após pressão do então recém-eleito prefeito Boris Johnson, que não queria manter um policial tão controverso no posto. A essa altura, Blair já havia acumulado desgaste com outros casos, como suspeitas de favorecimento em contratos, acusações de não lidar com o racismo institucional na força policial e até de mentir sobre sua biografia.

Em 2010, já fora da polícia, ele recebeu um título de nobreza após ser nomeado para uma cadeira na Câmara dos Lordes. À época, a família de Jean Charles declarou que a homenagem a Blair era o equivalente a “um tapa na cara” e disse estar “enojada”.

Blair morreu aos 72 anos em 11 de julho de 2025, poucos dias antes do 20° aniversário da morte de Jean Charles.

Lana Vandenberghe, a secretária que revelou mentiras sobre o caso

Trabalhando como secretária na IPCC à época da morte de Jean Charles, a canadense Lana Vandenberghe ficou indignada quando teve acesso a uma investigação preliminar e percebeu que as conclusões contradiziam as versões divulgadas publicamente pela polícia sobre a morte do brasileiro.

Nas semanas seguintes, ela passou a fotocopiar os documentos e depois entregou cópias para um jornalista da rede ITN, que era namorado de uma de suas amigas. Uma reportagem veiculada em agosto de 2005 sobre o relatório causou uma tempestade política e ajudou a desmontar a versão oficial e tornar públicos vários erros da operação.

Mas o ato de coragem de Vandenberghe acabou tendo consequências pessoais. Ela foi suspensa do IPCC e chegou a ser detida pela polícia junto com sua amiga e o jornalista da ITN.

Em 2006, diante da má repercussão, a polícia decidiu arquivar a investigação de vazamento. Em 2008, em entrevista à BBC, Vandenberghe disse que resolveu vazar os documentos por temer que a verdade nunca fosse revelada.

Os atiradores que mataram Jean Charles

As identidades de dois membros da equipe tática que efetuaram os disparos contra Jean Charles no metrô ainda permanecem secretas.

Oficialmente, eles ainda são referidos pelos seus códigos na operação: Charlie 2 (C2) e Charlie 12 (C12). Em 2024, C12 concedeu uma entrevista para um documentário do britânico Channel Four. Mostrando o rosto, mas sem revelar seu nome, C12, hoje aposentado, afirmou que acreditava que o acionamento da equipe armada era resultado de uma identificação positiva de que o alvo era mesmo o terrorista Hussain. C12 também afirmou que os policiais se identificaram antes de atirarem em Jean Charles – algo não corroborado por testemunhas.

Já C2 foi entrevistado em 2025 para uma série da Netflix sobre os atentados de julho de 2005. Sem mostrar o rosto, ele criticou o comando da polícia pela falta de instruções claras e estratégia, assim como a divulgação de informações falsas após a operação. “Gostaria de dizer à família de Jean Charles que sinto muito. Que eu e outro policial tenhamos sido colocados em uma posição em que matamos seu filho. Eu faria qualquer coisa para voltar no tempo e ter um conjunto diferente de circunstâncias em que isso não acontecesse. Não deveria ter acontecido”, disse o policial.

Família de Jean Charles

Jean Charles vivia em Londres com três primos: Alex, Vivian e Patrícia. Nos anos seguintes, com o apoio de ativistas baseados no Reino Unido, os familiares de Jean Charles passaram a liderar a campanha “Justiça para Jean” e buscar responsabilizar apolícia.

Em 2007, dois anos depois, a polícia de Londres foi condenada a pagar uma multa de 175 mil libras por violar padrões de segurança e saúde no caso. As autoridades ainda tiveram que pagar as custas legais do processo, no valor de 385 mil libras.

Mas, para indignação da família, o Ministério Público do Reino Unido decidiu não processar nenhum policial individualmente. Em 2008, uma investigação do IPCC concluiu sua análise do caso e listou todos os erros que foram cometidos durante a operação. Ainda assim, a comissão sugeriu que nenhum policial deveria ser processado individualmente. No mesmo ano, o Ministério Público, então sob a chefia do futuro premiê Keir Starmer, manteve a decisão de não processar envolvidos.

Em 2009, a família e a polícia acertaram uma indenização de valor não revelado.

Em junho de 2015, quase dez anos depois da morte do brasileiro, a família de Jean Charles reiniciou sua luta para tentar punir os policiais envolvidos, desta vez junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humano. No entanto, essa última tentativa não foi bem-sucedida

Mais recentemente, Vivian e Patrícia concederam entrevistas para o documentário da Netflix que abordou o caso. Os familiares de Jean Charles, incluindo sua mãe, Maria, hoje com 80 anos, também foram consultados para a produção da série Suspect: The Shooting of Jean Charles de Menezes, produzida pela Disney+ e lançada em abril de 2025. Em entrevista à imprensa britânica na ocasião do lançamento da série, Maria disse diz que vai continuar a lutar por Jean Charles e para “mostrar a verdade ao mundo”.