Regra foi desenhada durante “quase-guerra” com a França no século 18. Texto exige “guerra” ou “ameaça de invasão” para prender ou deportar estrangeiros sumariamente.Em 1798, a aproximação entre Estados Unidos e a Grã-Bretanha e a então recente abolição da monarquia na França colocou os americanos no limiar de uma guerra com os franceses. Em preparação ao conflito iminente, o Congresso dos EUA passou quatro leis que facilitavam a expulsão de estrangeiros e limitavam críticas ao governo federalista.

Mais de dois séculos depois, o conflito contra os franceses nunca se consolidou e a legislação prevista para ser usada “durante período de guerra” ou sob “ameaça de invasão” é agora aplicada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, como base para deportar imigrantes venezuelanos.

A Suprema Corte dos Estados Unidos deu aval ao movimento de Trump ao acatar nesta segunda-feira (08/04) um pedido do presidente para suspender uma ordem que impedia a aplicação da lei do século 18 no contexto atual.

A decisão da Corte permite que o presidente aplique o chamado Alien Enemies Act (Lei de Inimigos Estrangeiros, ou AEA) para reunir membros de organizações criminosas venezuelanas e enviá-los sumariamente ao Centro de Confinamento de Terrorismo (Cecot), o maior presídio da América Latina, localizado em El Salvador.

Entenda a disputa judicial

O caso estava em disputa judicial após a Casa Branca enviar 238 supostos membros do grupo venezuelano Tren de Aragua para El Salvador. O governo defende que a gangue conduz uma “guerra irregular e realiza ações hostis contra os Estados Unidos”.

Um magistrado de uma corte distrital em Washington, James Boasberg, tentou barrar a deportação com base no AEA, mas o gabinete de Trump disse que a decisão chegou “tarde demais”, sem apresentar evidências de que o avião partiu de solo americano antes do despacho da justiça.

A Casa Branca chegou a reconhecer posteriormente que um dos homens, um salvadorenho de 29 anos, foi deportado “por engano”, mas disse não poder trazê-lo de volta, já que agora ele está sob a jurisdição do governo de Nayib Bukele.

Ao suspender a ordem de Boasberg, a Suprema Corte abriu espaço para novas deportações acontecerem sob a lei de guerra. Contudo, o tribunal não analisou o mérito da legislação, ou seja, se ela pode ser aplicada neste modelo. A decisão foi suspensa apenas com base processual.

Os juízes entenderam que, como os imigrantes estão detidos no Texas, o caso deveria ter sido apresentado naquele estado, incapacitando um juiz de Washington de analisar a matéria. Na prática, abre espaço para a lei voltar a ser questionada nos tribunais texanos.

O tribunal superior americano também decidiu que os migrantes sujeitos à deportação sob a Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798 devem ser notificados e ter a oportunidade de contestar legalmente sua remoção.

Por que a Lei de Inimigos Estrangeiros foi criada?

No final do século 18 as tensões entre EUA e França escalavam. Em 1789, os americanos haviam saído de uma longa guerra de independência contra o Reino Unido, amplamente financiada pela monarquia francesa, e eleito seu primeiro presidente. Três anos depois, na Europa, a Revolução Francesa derrubou Luís 16 e instalou uma república no país.

Para os americanos, a derrocada da monarquia eliminava também sua dívida, já que os valores eram devidos à realeza deposta – e não à recém-instalada Convenção Nacional.

Pequenos embates navais passaram a ser travados no mar do Caribe e no mar das Antilhas, o que agitou também a política interna americana – um país que ainda tentava consolidar sua nova Constituição. O Partido Federalista dos EUA, que defendia um governo central forte, temia que os “estrangeiros” que viviam nos Estados Unidos simpatizassem com os franceses durante um possível conflito, explica o Arquivo Nacional dos EUA.

A guerra, de fato, nunca se consolidou – o período ficou conhecido como “quase-guerra” – mas provocou o Congresso americano a desenhar quatro leis, conhecidas coletivamente como Lei de Inimigos Estrangeiros e a Lei de Sedição. As regras limitavam discursos críticos ao governo e restringiam direitos de estrangeiros.

“Essas leis aumentaram os requisitos de residência para a cidadania de 5 para 14 anos, autorizaram o presidente a deportar estrangeiros e permitiram sua detenção, prisão e deportação em tempos de guerra. A Lei de Sedição tornou crime para os cidadãos americanos ‘imprimir, proferir ou publicar… qualquer texto falso, escandaloso e malicioso’ sobre o governo”, escreve o Arquivo Nacional. À época, o termo “Alien”, usado no título do ato, não carregava a conotação moderna hoje traduzida para “alienígena”.

A regra mirava principalmente os democratas-republicanos, o partido de oposição que agregava “novos cidadãos” americanos. Mesmo com a assinatura do Tratado de Mortefontaine, que cessou os embates com a França, alguns dispositivos da Lei de Sedição foram aplicados principalmente para acusar editores de jornais por desacato e suprimir dissidências no Senado.

Os julgamentos desencadearam uma tempestade de críticas contra os federalistas e contribuíram para sua derrota na eleição de 1800. “As controvérsias, no entanto, proporcionaram alguns dos primeiros testes dos limites da liberdade de expressão e de imprensa”, conclui o Arquivo Nacional.

O que diz a lei e como ela é usada?

Na prática, a lei permite ao governo americano prender ou deportar estrangeiros de uma “nação inimiga” sumariamente, ou seja, sem o devido processo legal. Estes dispositivos haviam sido usados apenas três vezes na história dos EUA – em 1812, na guerra anglo-americana, e durante a Primeira e a Segunda Guerra.

Com isso, o alvo das detenções eram cidadãos provenientes dos países envolvidos nestes conflitos, como alemães, austro-húngaros, japoneses e italianos. A lei é mais conhecida por sua aplicação contra 120 mil imigrantes ou descendentes de imigrantes japoneses durante a Segunda Guerra, incluindo alguns com cidadania americana. A lei continuou a ser usada mesmo após o fim das hostilidades.

O presidente americano só pode convocar o ato em tempos de “guerra declarada”. Segundo a Constituição, quem pode declarar guerra no país é o Congresso, e não o poder Executivo. Isso faz com que primeiro seja necessário um debate legislativo antes do uso da lei. Contudo, o presidente não precisa esperar os parlamentares para evocar a regra se houver uma “incursão predatória” ou “invasão” iminente contra o território americano.

Essa possibilidade abre uma disputa de interpretação sobre sua implementação. “Alguns políticos e grupos anti-imigração pedem uma interpretação não literal da invasão e da incursão predatória para que a Lei de Inimigos Estrangeiros possa ser invocada em resposta à migração irregular e ao tráfico transfronteiriço de narcóticos”, escreve o instituto de direito e políticas públicas Centro Brennan para Justiça, da Universidade de Nova York.

“Mas essa interpretação proposta para a lei está em desacordo com séculos de práticas legislativas, presidenciais e judiciais, todas as quais confirmam que a Lei de Inimigos Estrangeiros é uma autoridade de guerra. Invocá-la em tempos de paz para contornar a lei convencional de imigração seria um abuso gritante”, avalia.

Como Trump justifica o uso da lei?

Durante anos, Trump argumenta que os EUA estão enfrentando uma “invasão” de imigrantes irregulares no país. Autoridades do governo também usam a terminologia militar para descrever a entrada irregular de estrangeiros.

Em comunicado, a Casa Branca disse que a organização venezuelana Tren de Aragua (TdA) “está perpetrando, tentando e ameaçando uma invasão ou incursão predatória” contra o território dos EUA.

A Casa Branca ainda afirma que o TdA está conectado com o regime de Nicolás Maduro e cita avaliação da Interpol para justificar o uso do termo “invasão”. “Em dezembro de 2024, a Interpol Washington confirmou: ‘O Trem de Aragua surgiu como uma ameaça significativa aos Estados Unidos, pois se infiltra nos fluxos migratórios da Venezuela’. Evidências demonstram irrefutavelmente que o TdA invadiu os Estados Unidos e continua a invadir.”

No último domingo, Trump foi mais longe para justificar o ato e defendeu que “este é um tempo de guerra”.

gq/cn (ap, dpa, afp, ots)