05/07/2025 - 13:30
Com uma alta de quase 200% em 2024, o preço do cacau encareceu a produção de chocolates. E uma das saídas encontradas pela indústria alimentícia para lidar com o aumento de custos foi mudar ingredientes e colocar nas prateleiras produtos “sabor chocolate”. Mas o que é isso?
Quais são as trocas e artifícios utilizados pela grande indústria para simular o sabor do chocolate usando menos cacau? O que diz a legislação brasileira sobre o nível de cacau obrigatório no chocolate fabricado?
A IstoÉ Dinheiro buscou alguns especialistas para responder essas perguntas.
O chocolate de hoje está pior?
Para quem tem mais de 30 anos, uma percepção recorrente é que os chocolates, bombons e biscoitos com chocolate vendidos entre as décadas de 1990 e 2000 eram melhores do que os de hoje em dia. Mas será que isso se trata de uma falsa lembrança de épocas mais simples ou o chocolate de hoje realmente está pior?
Para a especialista em chocolate Luciana Monteiro, da consultoria Ara Cacao, a qualidade de fato piorou.
“O chocolate de hoje, principalmente o das grandes marcas, é sim, pior do que do antigamente. São vários motivos pra isso: oferta menor de cacau no mercado nacional e um olhar mais mercadológico das grandes indústrias, pensando em redução de custos e aumento de market share”, afirma.
Produtos simulam o sabor chocolate

Como a grande indústria trata isso como segredo, é difícil saber exatamente o que os produtos sabor chocolate usam para substituir o cacau, mas é possível identificar algumas pistas.
Uma das principais alterações é troca da fonte de gordura da manteiga de cacau para outras fontes vegetais mais baratas, como soja, além do uso de mais açúcar ou até mesmo o uso do pó de cacau ao invés do nibis de cacau macerado. Muitas vezes o uso de cacau nesses produtos não ultrapassa 15%.
“Produtos rotulados como ‘sabor chocolate’ são alimentos que contêm aditivos ou aromatizantes naturais ou artificiais que simulam o sabor característico do chocolate, mas não possuem a proporção mínima exigida de sólidos de cacau, ou utilizam substitutos lipídicos e bases que descaracterizam a formulação padrão. Tais produtos, embora possam apresentar atributos sensoriais semelhantes ao chocolate, não compartilham de sua composição tecnicamente definida e, portanto, não podem ser rotulados ou comercializados como chocolate”, explicou Elisabeth Motta, professora da pós-graduação em engenheira de alimentos da Estácio.
Aroma ‘idêntico ao natural’
A indústria de chocolate brasileira vem estudando formas de diminuir a presença de cacau em seus produtos. Uma delas foi desenvolvida pela IFF e é distribuída pela companhia MasterSense no Brasil: o Cocoa Extender.
A empresa informa que o produto pode reduzir em até 35% o uso do cacau pelas grandes indústrias e que ele foi desenvolvido por meio de um processo de engenharia de alimentos, sem o uso do cacau.
Fernando de Jesus, Gerente de Marketing e Inovação da MasterSense, explica que o produto, em formato de pó, é um aroma idêntico ao natural, e que foi desenvolvido com tecnologias proprietárias da companhia que conseguem replicar características do cacau como sabor, corpo e retrogosto.
“Sua composição inclui carriers naturais, notas aromáticas complexas e químicos aromáticos que promovem o perfil de cor, sabor, olfato do cacau. Essa combinação tecnológica busca ter uma reprodução fiel do perfil sensorial do cacau tradicional”, afirma o gerente.
O que diz a legislação?
Uma das razões que permitiu o avanço deste produtos foi a mudança de legislação em 2005, que fez com que o mínimo de cacau exigido no chocolate ao leite vendido no Brasil passasse de 35% para 25%.
“Além de reduzir o cacau, essa legislação não impõe um limite para o uso de gorduras vegetais. Em muitos outros países, há um limite para o uso de outras gorduras além da manteiga de cacau. No Brasil, não há esse limite. Com a permissividade legal e o foco da indústria na competitividade, tornou-se viável e vantajoso substituir o cacau e a manteiga de cacau, que são ingredientes mais caros e saborosos, por alternativas mais baratas”, explica Luciana.
De acordo com a legislação brasileira vigente, produtos como o Cocoa Extender podem ser declarados na rotulagem simplesmente como “aromatizante” e não há a necessidade de destacar a substituição do cacau no rótulo de ingredientes.
O que dizem as fabricantes
No início de 2025, a Bauducco realizou mudanças na receita do seu choco biscuit. A empresa alterou a descrição de “biscoito com barra de chocolate ao leite” para “biscoito com barra sabor chocolate ao leite”.
Em nota enviada para a reportagem, a empresa afirmou que o motivo da mudança foi a alta no preço do cacau e que realizou um estudo com consumidores antes de realizar a troca. “O estudo encomendado pela marca mostrou que, considerando todas as métricas avaliadas, a receita atingiu 99% de performance comparativa à receita original entre os consumidores habituais do produto. A alteração foi devidamente comunicada nas embalagens, conforme previsto pela legislação”
A Nestlé também lançou em 2025 barras ‘sabor chocolate’. Se trata das barras Alô Doçura, Surreal e Onix, ambas da marca Garoto. À reportagem, a companhia informou que, diante da escalada de preços do cacau desde 2022, “todo setor vem buscando diferentes maneiras de evitar o repasse desse aumento de preços ao consumidor” e que possui “um portfólio diverso com o objetivo de manter a qualidade dos nossos produtos e garantir que eles continuem com preços acessíveis ao maior número possível de consumidores”.
A companhia também afirmou que a mudança passam por testes com consumidores selecionados antes de chegar às prateleiras.
O que o consumidor pode fazer ao se sentir enganado?
Muitos produtos podem induzir o consumidor ao erro ao omitir do rótulo a informação sobre o “sabor chocolate” ou dar a entender que se trata de um chocolate legítimo quando não é, o que pode configurar publicidade enganosa.
“A primeira medida é recorrer aos canais de defesa do consumidor, como o Procon ou o próprio Ministério da Agricultura. O Código de Defesa do Consumidor garante o direito à informação clara, precisa e adequada. Também é comum vermos no mercado alimentos que não só usam nomes parecidos com os de marcas conhecidas, mas também imitam completamente a apresentação gráfica. Esta prática ilícita visa enganar os consumidores e pode configurar uso indevido de marca e concorrência desleal”, explicou David Fernando Rodrigues, advogado do escritório Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello.