07/02/2025 - 15:49
Tribunal Penal Internacional foi criado em 2002 para julgar crimes de guerra e contra a humanidade. Indiciamentos contra chefes de governo como Netanyahu e Putin, porém, geram desafios de implementação de suas decisões.As sanções impostas pelos Estados Unidos contra o Tribunal Penal Internacional (TPI), em resposta ao mandado de prisão emitido contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, representam um marco na história recente do órgão, que até 2022 nunca havia indiciado um cidadão que não fosse africano.
O decreto assinado pelo presidente Donald Trump autoriza a aplicação de sanções financeiras e restrições de visto a indivíduos e seus familiares que colaborem com as investigações do TPI sobre cidadãos dos EUA ou de seus aliados, incluindo Netanyahu.
O embargo americano agrava a já delicada posição do tribunal, que enfrenta dificuldades para implementar suas decisões. Sem uma força policial própria, o TPI depende da cooperação dos países signatários para executar seus mandados de prisão. No entanto, essa colaboração tem sido cada vez mais prejudicada pelos interesses políticos das lideranças internacionais.
Entenda o que é o TPI e como ele entrou na mira de nações como os Estados Unidos, Israel e Rússia.
O que é o TPI e por que ele foi criado?
O TPI foi fundado sob o Estatuto de Roma, de 1998, e estabelecido quatro anos depois, em 2002, quando atingiu quórum suficiente de signatários para sua criação. O principal objetivo do tratado era criar um tribunal penal permanente capaz de julgar crimes de guerra.
Antes da implementação do TPI, era comum a criação de cortes temporárias, como o Tribunal de Nurembergue, que se debruçou sobre os horrores cometidos na Segunda Guerra Mundial. Outros tribunais ad hoc foram criticados devido à sua dificuldade de julgar crimes, como o que avaliou conflitos em Ruanda e na antiga Iugoslávia.
O TPI foi instituído sob a tentativa de padronizar tais julgamentos e criar um órgão forte, com maior poder de endossar suas decisões. Inicialmente, 123 países concordaram em cooperar com o tribunal, entre eles o Brasil. Vinculada à estrutura das Nações Unidas, a Corte foi estabelecida em Haia, na Holanda, e conta com 18 magistrados eleitos pelos Estados membros.
Desde sua criação, o TPI pode processar crimes cometidos por nacionais de seus Estados membros ou no território de Estados membros, mesmo que impetrado por outros atores. Ele é especialmente acionado quando um suposto crime é cometido em um país cujo sistema político e jurídico não quer ou não consegue julgar os responsáveis.
Que ações ele pode de fato julgar?
O TPI pode processar crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e o crime de agressão. Ou seja, crimes cometidos dentro de um país que não está em guerra também podem chegar ao Tribunal de Haia, caso o Estado não cumpra seu dever de julgá-los. Tais crimes foram descritos de forma taxativa no Estatuto de Roma, o que faz com que os países membros também endossem sua definição.
O crime de genocídio, por exemplo, é tomado como qualquer ato “praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso”. Em seu escopo estão casos de extermínio e ofensas à integridade física ou mental de um grupo.
Crimes contra a humanidade incluem escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, tortura e agressão sexual. Entre os múltiplos crimes de guerra, estão, por exemplo, a tomada de reféns e ataques direcionados à população civil ou a funcionários de ajuda humanitária.
As denúncias podem ser feitas pelos Estados membros, e o procurador do TPI pode acatá-las ou não.
Quantas pessoas já foram condenadas?
Os juízes do TPI emitiram 11 condenações em 23 anos. Já entre os investigados com mandado de prisão ativo, 31 permanecem foragidos e 5 estão sob custódia neste momento. As acusações contra sete pessoas foram retiradas devido à morte dos acusados.
Das 11 condenações, apenas seis foram por crimes centrais, como crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Todos os seis condenados eram líderes de milícias africanas da República Democrática do Congo, Mali e Uganda. As demais estão relacionadas a violações como manipulação de testemunhas.
As penas variam de nove a 30 anos de prisão, sendo a pena máxima possível a prisão perpétua.
Quem está na lista dos mandados de prisão?
Até o momento, o TPI abriu processos contra 69 indivíduos, 49 deles por crimes de guerra. Do total, 55 mandados de prisão foram emitidos.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, está nesta lista. Ele foi indiciado por assassinato, perseguição e uso da fome como arma de guerra no conflito em Gaza. O líder israelense rejeitou a decisão, chamando-a de antissemita e alegando que as acusações são absurdas e falsas.
Também foi emitido um mandado contra o ex-ministro da Defesa israelense Yoav Gallant e contra Ibrahim al-Masri, também conhecido como Mohammed Deif, ex-líder do grupo palestino Hamas, cuja morte foi confirmada por Israel.
O mandado contra Masri incluía acusações de assassinato, estupro e tomada de reféns durante os ataques de 7 de outubro de 2023 em Israel, que desencadearam o conflito em Gaza.
Na lista ainda está o presidente russo, Vladimir Putin, acusado de crime de guerra por deportação ilegal de centenas de crianças da Ucrânia. Em março de 2023, após o tribunal emitir o mandado, o Kremlin afirmou que a decisão era insignificante. Moscou nega repetidamente que suas forças tenham cometido atrocidades durante a invasão da Ucrânia.
Nos últimos meses, o promotor do TPI também solicitou mandados de prisão para líderes do Afeganistão e de Mianmar, mas esses ainda não foram aprovados oficialmente pelos juízes.
Quais as investigações ativas no momento?
O TPI conduz investigações em territórios palestinos, Ucrânia, países africanos como Uganda, República Democrática do Congo e Quênia, além de Venezuela, Mianmar e Filipinas, segundo seu site oficial.
Há 32 casos abertos no tribunal, alguns envolvendo mais de um suspeito.
Quais países não são membros?
Embora o tribunal seja apoiado por muitos membros da ONU e pela União Europeia, países como Estados Unidos, China e Rússia não são membros. Eles alegam que o TPI pode ser usado para perseguições politicamente motivadas.
Mianmar também não é membro do tribunal, mas em 2018 e 2019 os juízes decidiram que o tribunal tinha jurisdição sobre crimes transfronteiriços que ocorreram parcialmente no vizinho Bangladesh, integrante da Corte, como deportação e perseguição, permitindo que os promotores abrissem uma investigação formal.
Israel também não é membro do tribunal e não reconhece sua jurisdição, mas os territórios palestinos foram admitidos como membros do TPI em 2015. Isso, junto com uma decisão dos juízes, permite ao tribunal investigar possíveis crimes de guerra cometidos por combatentes do Hamas em Israel e por israelenses na Faixa de Gaza.
A mudança de foco e os ataques ao TPI
Segundo um levantamento feito pela DW, até 2022, todas os indiciados pelo TPI eram africanos. A Corte foi instituída para analisar crimes em todo o mundo, mas ganhou reputação como um tribunal europeu focado exclusivamente nos conflitos em curso na África.
Isso mudou quando a Corte começou a se debruçar sobre a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e grupo fundamentalista islâmico Hamas, o que escancarou a resistência de alguns países em implementar as decisões do TPI.
Os EUA e outros países ocidentais, por exemplo, afirmam que o Tribunal de Haia estaria minando a soberania dos Estados quando investiga suas lideranças políticas, e equiparando ações de chefes de governo à de terroristas.
Em 2009, porém, um caso apresentado pelo Conselho de Segurança da ONU levou pela primeira vez à prisão de um presidente, quando o TPI indiciou o chefe de governo do Sudão, Omar al-Bahir. À época, sua prisão não foi questionada.
Os americanos afirmam que o TPI não pode ser usado contra nacionais de países que possuem sistemas de justiça funcionais. “O Estatuto de Roma foi criado para promover a justiça e a lei onde elas não existem. Lugares como a Rússia, os lugares mais profundos e sem governo da África. O Estatuto não se aplica a Israel, ou aos EUA, ou à França, ou à Alemanha, ou ao Reino Unido, porque não foi criado para vir atrás de nós”, defendeu o senador americano Linsey Graham.
Malcolm Jorgensen, do Instituto para Lei Internacional, acredita que o argumento é falho. “O problema é que isso se torna um conflito de interesse. Pois é a própria opinião de um país dizendo se ele ou seus amigos estão aderindo suficientemente ao Estado de direito. Não é assim que a lei internacional funciona”, afirmou à DW.
O desafio de implementar mandados de prisão
Como o tribunal funciona dentro da estrutura das Nações Unidas, ele não possui força policial para aplicar seus mandados de prisão, e depende que os signatários o executem. As alianças entre os países, porém, dificultam essa implementação.
Em setembro passado, por exemplo, Putin visitou a Mongólia, país-membro do TPI, que não endossou o mandado de prisão contra o líder russo. A África do Sul também atuou para contornar a ordem do tribunal contra o russo.
Em outubro, o presidente da Rússia evitou viajar ao Brasil para o G20 e disse que seu mandado de prisão poderia atrapalhar o encontro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou que a decisão de execução da ordem do TPI seria da Justiça.
O dilema também se abriu em países europeus, no caso de Netanyahu, apesar de a União Europeia ter defendido o mandado de prisão contra Putin.
Na Polônia, o governo emitiu um salvo-conduto que permitiria ao israelense visitar o país sem ser preso, durante homenagem ao 80º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz. O primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, citou “circunstâncias absolutamente extraordinárias” para emitir a decisão.
A Alemanha também foi fortemente questionada se cumpriria a prisão contra o primeiro-ministro israelense, uma vez que o país se vê em uma “responsabilidade histórica” com Israel, um de seus maiores aliados. Por outro lado, a Alemanha é também um dos mais fortes apoiadores da jurisdição internacional do TPI. Em novembro, o governo disse ser improvável que executaria uma possível prisão de Netanyahu.
Para John-Mark Iyi, diretor do Centro Africano para Justiça Criminal Transnacional, tais desafios às ordens do tribunal minam o órgão e podem levar a seu congelamento. “Está muito claro que se o TPI falhar em aplicar estes mandados, então este será o último prego em seu caixão”, disse à DW.
gq/cn (DW, Reuters, ots)