10/08/2025 - 17:45
Espaços previstos para linhas de metrô que não se concretizaram funcionam agora como abrigo para pessoas em situação de rua. Outros túneis servem à drenagem do lençol freático ou para manobras de trens.Quem circula diariamente pela Estação Pedro 2º, no centro de São Paulo, dificilmente imagina que, 20 metros abaixo dos trilhos, existe uma plataforma que jamais recebeu um trem. Uma espécie de estação fantasma, resultado de um projeto de expansão do metrô paulistano que acabou abortado – mas que encontrou novo uso em noites geladas: abrigo emergencial para a população em situação de rua.
A plataforma subterrânea foi construída nos anos 1970, quando os engenheiros que projetavam o metrô acreditavam que a cidade cresceria em direção à zona sudeste. A ideia era que uma futura linha – hoje associada ao traçado da Linha 4-Amarela – fizesse um arco vindo de Pinheiros até o Ipiranga, interceptando a Linha Vermelha no subsolo da Pedro 2º. O crescimento urbano, porém, seguiu outro ritmo e outras direções. A linha jamais foi construída naquele trecho, mas a estrutura foi mantida.
“Essa plataforma foi feita já pensando numa linha futura. A engenharia da época deixou tudo pronto no subsolo para que não fosse preciso demolir a estação, caso o traçado fosse implantado”, explica o arquiteto e gerente de projetos do metrô João Carlos Santos. “Se ela tivesse sido construída como previsto, hoje estaríamos exatamente aqui, esperando o trem.”
Mesmo sem trilhos, o espaço subterrâneo não ficou abandonado. Desde 2022, durante as noites mais frias, o governo de São Paulo transformou o local em abrigo temporário com capacidade para cerca de 150 pessoas. Ali são oferecidos camas, mantas, roupas, alimentação, café da manhã e até um espaço específico para quem chega com animais de estimação – algo que em outros abrigos não é permitido.
“Recebemos homens, mulheres, famílias inteiras, inclusive com bebês e pets”, relata o capitão Eduardo Schulte, diretor de recuperação da Defesa Civil de São Paulo. “Muitos preferem passar frio nas ruas a deixar seus animais. Aqui eles não precisam fazer essa escolha.”
Paulo Francisco de Oliveira, ex-cozinheiro, é um dos frequentadores do abrigo. Acolhido ao lado da companheira e de uma cadelinha de dois meses, diz se sentir mais seguro ali do que nos albergues tradicionais. “Você vai para um albergue, é pior até que na rua. Você leva uma coisa, o cara toma de você. Rouba. Aqui a gente consegue relaxar um pouco”, afirma ele. No entanto, apesar do alívio, o sono de apenas uma hora a uma hora e meia se mantém. “Força do hábito.”
Mistério da Engenharia
A ideia de uma rede de túneis inacabados ou estações fantasmas pode soar como algo saído de um romance de mistério. Mas, no caso paulistano, é fruto da combinação entre planejamento de longo prazo e mudanças nas dinâmicas urbanas. A capital paulista conta hoje com cerca de 104 quilômetros de linhas de metrô, menos da metade do que previa o plano original elaborado há cinco décadas. O traçado das linhas Azul, Vermelha e Verde foi ajustado sucessivas vezes ao longo dos anos.
Algumas bifurcações e ramais planejados, como o “Ramal Moema”, entre as estações Paraíso e Ana Rosa, nunca se concretizaram. A bifurcação da Linha Azul, que teria como destino o bairro da zona sul, hoje é utilizada como estacionamento de trens de manutenção.
Na Estação São Bento, outra obra subterrânea chama atenção: túneis com até 32 metros de profundidade, que mais lembram cavernas, isolados do solo por paredes conhecidas como “diafragma”. Servem como contenção da colina histórica da região central, mantendo a estação seca e segura mesmo abaixo do leito do rio Anhangabaú.
“Essas paredes seguram toda a carga do entorno e funcionam como drenagem do lençol freático”, explica José Luís de Carvalho, supervisor de manutenção. “Além disso, garantem que toda infiltração vá para o subsolo, aliviando a estação da pressão lateral.”
Além da Pedro 2º, há outras plataformas “invisíveis” em diferentes pontos da cidade. Algumas servem como áreas técnicas, outras seguem interditadas ao público. Com o tempo, ganharam fama entre urban explorers, curiosos e até como cenário de lendas urbanas. Para os engenheiros do metrô, porém, são apenas vestígios de um sistema pensado com ambição e visão de futuro, mas que teve que se adaptar às transformações da cidade.
“No passado, havia essa preocupação em antecipar o crescimento urbano e já deixar preparado o que pudesse ser aproveitado depois”, comenta João Carlos Santos. “A cidade mudou, os estudos também, e a demanda apontou para outros rumos. Mas o que ficou pôde ser ressignificado.”
É o que vem acontecendo. Espaços projetados para trens se transformam, hoje, em abrigos. Túneis não utilizados garantem a estabilidade de estações. Plataformas inacabadas viram prova de que até nas profundezas esquecidas da cidade é possível encontrar uma função, abrigo e humanidade.