Região é reivindicada há mais de sete décadas pelos dois países e concentra interesses estratégicos globais, inclusive da China; ataques deixaram dezenas de mortos dos dois lados nas últimas semanas.Os ataques recentes entre Índia e Paquistão marcam uma grave escalada do conflito entre as duas potências nucleares em torno da região da Caxemira. A Índia deixou ao menos 26 mortos na madrugada desta quarta-feira (07/05) ao disparar mísseis contra alvos civis do lado paquistanês. Islamabad revidou com ataques de artilharia e afirma ter derrubado caças indianos que voavam no espaço aéreo da Índia. Enquanto isso, soldados dos dois países se enfrentam nos limites de seus territórios na região disputada.

O governo indiano afirma que a ofensiva desta quarta foi em retaliação ao atentado terrorista de 22 de abril em que homens armados, supostamente baseados no Paquistão, invadiram Pahalgam, região turística na Caxemira administrada pela Índia, e abriram fogo contra civis, deixando ao menos 26 mortos, a maioria hindus. Eles teriam selecionado as vítimas com base em sua religião, pedindo para que recitassem versos islâmicos para identificar não-muçulmanos antes de atirar. O Paquistão nega envolvimento no ataque.

Os acontecimentos recentes adicionam mais tensão entre os dois países, que têm um histórico de mais de sete décadas de conflito. Poucas regiões do mundo são tão instáveis e com uma presença militar tão densa como a Caxemira. Encravado no Himalaia e fazendo fronteira com três potências nucleares (Índia, Paquistão e China), o território é uma ferida aberta por rivalidades regionais e disputas territoriais não resolvidas.

Encruzilhada de interesses

Com uma área de aproximadamente 222 mil quilômetros quadrados, a Caxemira é dividida entre a Índia, o Paquistão e a China, mas é totalmente reivindicada pela Índia e pelo Paquistão. A região tem cerca de 20 milhões de habitantes – 14,5 milhões em território administrado pela Índia, cerca de 6 milhões em território administrado pelo Paquistão e alguns milhares em território administrado pela China. A região é uma encruzilhada de interesses estratégicos, econômicos e religiosos.

A história moderna do conflito remonta a 1947, quando a Índia Britânica foi dividida em Índia, de maioria hindu, e Paquistão, de maioria muçulmana. O que hoje constitui o território indiano de Jamu e Caxemira – parte da região mais ampla da Caxemira – era, na época, governado pelo marajá hindu Hari Singh, que inicialmente se recusou a se juntar a qualquer um dos países.

Guerrilheiros paquistaneses tentaram então tomar a região e derrubar o monarca, que pediu ajuda da Índia para afastar os invasores, dando origem ao primeiro conflito entre a Índia e o Paquistão. Em retribuição ao apoio decisivo, o marajá cedeu seu estado principesco a Nova Délhi, reforçando uma divisão da Caxemira que ainda se mantém.

Atualmente, a Índia controla a parte mais populosa da região, que inclui o Vale da Caxemira, Jamu e Ladaque. O Paquistão detém partes do norte da Caxemira, incluindo Caxemira Livre e Guilguite-Baltistão. A China administra a região pouco povoada de Aksai Chin, no nordeste, também reivindicada pela Índia, e o Vale de Shaksgam, onde a Índia não reconhece o controle chinês.

O Paquistão sustenta que a Caxemira, com sua maioria muçulmana, deveria ter se tornado parte do seu território na época da divisão. A Índia, por outro lado, afirma que o documento assinado por Hari Singh em 1947 torna legítima e definitiva a reivindicação da Índia ao território. No entanto, juristas contestam essa afirmação e questionam a validade de um documento assinado sob coação.

A discordância alimentou várias guerras, insurgências e décadas de hostilidade diplomática.

O terceiro elemento: China

Embora a Índia e o Paquistão dominem as narrativas históricas sobre a Caxemira, a China também tem influência na região – e agora quer ser ouvida.

Em resposta aos ataques da Índia desta quarta, Pequim instou os dois países a terem “moderação máxima” e pediu uma redução imediata da escalada da violência, expressando preocupação sobre como um conflito maior poderia desestabilizar países ao redor.

Na parte nordeste da região, o Vale Shaksgam e Aksai Chin são administrados pela China, mas reivindicados pela Índia. Enquanto o vale é pouco habitado devido ao terreno acidentado, a área de Aksai Chin é estratégica para a conectividade terrestre entre Tibete e Xinjiang, ambas regiões autônomas chinesas.

A China estabeleceu o controle sobre Aksai Chin na década de 50 ao construir uma rodovia entre Xinjiang, onde é acusada de reprimir a minoria muçulmana dos uigures, e o Tibete, região de maioria budista que enfrenta a repressão religiosa, cultural e política de Pequim. A Índia se opôs à presença chinesa na área, o que culminou na guerra sino-indiana de 1962. Após o breve – porém intenso – conflito, a China manteve o controle de Aksai Chin. Nos últimos anos, Pequim expandiu sua presença militar ao longo da disputada Linha de Controle Real, destinada a demarcar a fronteira entre os dois países, o que levou a um aumento dos embates.

Mas a importância dessa região para a China vai além da preocupação estratégica. O Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), um dos maiores investimentos em infraestrutura já realizados por Pequim no exterior, passa por Guilguite-Baltistão, administrado pelo Paquistão. Isso torna a estabilidade da Caxemira uma questão financeira, e não apenas geopolítica, para Pequim.

Poderio militar

Estima-se que a Índia mantenha mais de 750 mil soldados em Jamu e Caxemira, concentrados principalmente no Vale da Caxemira, de maioria muçulmana. O Paquistão, por sua vez, conta com 120 mil militares apenas para guardar a fronteira com a Índia, além de forças especializadas, como a Força Mujahid, e 230 mil soldados na região.

Ambos os lados acusam o outro de exagerar nas provisões militares, e nenhum deles publica números precisos. Entretanto, analistas avaliam que a densidade militar da região, especialmente em relação à população civil, é semelhante à da península coreana.

A presença de grupos rebeldes acrescenta outra camada de complexidade ao cenário. A insurgência armada na Caxemira administrada pela Índia, que começou no final da década de 80, se sustenta por um misto de descontentamento local e apoio externo. A Índia acusa o Paquistão de dar suporte a grupos militantes, como Hizbul Mujahideen, Jaish-e-Mohammed e Lashkar-e-Taiba, que realizaram ataques na região, mas Islamabad nega.

E agora?

O que acontecerá daqui pra frente dependerá em grande parte de como a Índia e o Paquistão gerenciarão as consequências diplomáticas e militares das ofensivas militares nos próximos dias.

A Índia afirmou que os ataques desta quarta foram “projetados para serem de natureza não escalonada”, mirando apenas “campos terroristas conhecidos”. Analistas afirmam, contudo, que a situação pode continuar perigosamente instável nos próximos dias, com ambos os governos sob intensa pressão, especialmente após os ataques mortais e o aumento do nacionalismo nos países envolvidos.