27/10/2022 - 6:37
Em 27 de outubro de 2002, com quase 53 milhões de votos — mais de 61% dos votos válidos naquele pleito —, o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil. Pela primeira vez, o Partido dos Trabalhadores (PT) chegava ao comando do Executivo do país. Também foi a primeira vez que um brasileiro de origem extremamente pobre alcançava o Palácio do Planalto.
Lula acabaria reeleito para um segundo mandato, quatro anos mais tarde, e depois elegendo sua sucessora, a também petista Dilma Rousseff. Agora, duas décadas depois, concorre mais uma vez para ao cargo político mais importante da nação.
Tanto agora quanto 20 anos atrás, Lula fez um amplo leque de alianças, escolheu como vice na chapa um nome conservador e divulgou uma carta pública expondo seus compromissos frente ao povo brasileiro. Mas as diferenças entre os dois momentos são grandes.
“Em 2002, o que estava em jogo era a vitória do partido A ou do partido B, mas não estava em jogo a democracia. O que estamos assistindo hoje é mais do que quem vai ganhar a eleição: estamos discutindo o futuro da democracia brasileira”, pontua o cientista político Fábio Kerche, professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
O Brasil de 2002
Mas para situar os “dois Lulas” na história é preciso compreender qual era aquele Brasil de 2002. Um país que vinha de dois governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e parecia maduro na questão da estabilidade da moeda e do compromisso fiscal. Naquele mês de outubro, o dólar era negociado a R$ 3,85.
“Lula encontrou um cenário de ‘casa organizada’, já que o Brasil tinha passado por uma estabilização macroeconômica importantíssima. Cardoso pavimentou o caminho para que Lula avançasse nas políticas sociais, o que era o grande desafio daquele momento”, contextualiza o cientista político Dawisson Belém Lopes, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador na Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Agora, conforme ressalta Lopes, o Brasil enfrenta problemas de “deterioração institucional” e “uma inflação difícil de domar” e um próximo governo terá de lidar com esses desafios.
“A tônica de 2002 era uma crise do neoliberalismo, que pregava a disciplina fiscal, com o discurso de que o Estado precisava cortar gastos e diminuir seu papel na economia e na sociedade”, aponta a cientista política e socióloga Mayra Goulart, professora na. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Lula se apresentava como uma alternativa, menos radical do que em eleições anteriores, frente ao esgotamento desse discurso [neoliberal].”
Apesar de serem adversários políticos na ocasião, FHC reconheceu a vitória de Lula e conduziu a sucessão de maneira aberta e amistosa. “Foi um dos episódios mais civilizados da história política brasileira”, comenta o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Ele enfatiza que aquele país herdado por Lula na ocasião era “internacionalmente respeitado, com uma economia reorganizada e com uma democracia de massas em processo de consolidação”. “Fernando Henrique Cardoso entregou ao seu sucessor um país economicamente transformado, inserido no mundo como um ator relevante e com instituições sólidas e vibrantes”, elenca o pesquisador.
Natalino compara o cenário com o atual momento e lembra que, se for eleito, Lula terá de comandar um país que se recupera economicamente de forma lenta “após a desastrosa recessão de 2015 e 2016 e os quase dois anos de pandemia”.
“Houve ainda um processo de desindustrialização nas regiões metropolitanas, o que elevou o desemprego estrutural. Politicamente, o país está mais dividido, com ataques frequentes às instituições democráticas”, analisa o pesquisador. Internacionalmente, o Brasil está “mais isolado, com pouca ou nenhuma relevância nos processos decisórios regionais e globais”, pontua.
A volta do “Lulinha paz e amor”
No processo eleitoral, contudo, há muitas semelhanças entre aquela campanha petista de 2002 e a atual. A começar pela pose “Lulinha paz e amor”.
“A construção dessa imagem, fruto de um trabalho de marketing político conduzido pelo publicitário Duda Mendonça, buscava amenizar a imagem do líder sindical que incentivava greves nos anos 1970 e 1980, que havia sido contra o plano Real nos anos 1990 e que pregava o ‘Fora FMI’ e uma moratória na dívida externa”, recorda Natalino.
Havia uma expectativa sobre qual seria o discurso de Lula neste 2022, sobretudo depois das reviravoltas político-econômicas atravessadas pelo país, do crescimento da extrema direita e dos 580 dias em que ele esteve preso. A campanha atual, contudo, parece apostar novamente no Lula carismático e capaz de conciliar — a mensagem é que ele seria capaz de reunificar um Brasil dividido.
“Lula é um político pragmático. Ele não tem formação acadêmica para carregar ideologias fortes. Ele é sindicalista, vai com o que dá certo no convencimento, na empatia”, explica o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador do German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo.
A escolha de Geraldo Alckmin, hoje no PSB mas com a marca de ser um tucano histórico, para o papel de vice é, de certa forma, uma reedição da dobradinha feita em 2002 e 2006 com o empresário e político José Alencar (1931-2011).
“Foi para sinalizar que o Lula faria um governo moderado do ponto de vista econômico”, frisa Kerche. “A literatura mostra que, em eleições de dois turnos, a tendência dos candidatos é caminhar para o centro para, assim, ampliar o número de eleitores.”
O arco de alianças também guarda suas semelhanças. No modus operandi político convencional isso é visto como essencial, algo fundamental para atingir a maioria necessária para vencer no segundo turno.
“Para governar o Brasil, a esquerda entendeu que precisa compor com a direita, com setores da direita e de centro. Então tanto em 2002 como agora em 2022 Lula fez acenos e gestos concretos em direção ao centro, de modo a compor um governo de centro-esquerda e centrista em larga medida”, afirma Lopes.
Apesar de menos enfáticas, as chamadas pautas de costumes também estiveram presentes naquela disputa de 20 anos atrás. A campanha tucana, cujo candidato era José Serra, apelou para um discurso do medo. A atriz Regina Duarte — hoje bolsonarista ferrenha e que chegou a ocupar o posto de secretária da Cultura na gestão de Jair Bolsonaro — deu as caras no horário eleitoral gratuito personificando esse temor que havia, em setores mais conservadores, quanto aos eventuais riscos de um governo petista.
“Foi uma campanha que opôs o medo e a esperança”, lembra Natalino. O tom ainda era menos contundente do que as mensagens que hoje viralizam nas redes sociais e grupos de WhatsApp e Telegram, mas questões como aborto e outras pautas do tipo também foram trazidas à tona.
Para sinalizar que não iria colocar em risco o cenário econômico do país, em 2002 Lula publicou a Carta ao Povo Brasileiro. O mesmo artifício foi utilizado desta vez — mas o alvo não foi o mercado financeiro, e sim os evangélicos. Lula procurou responder a inúmeras fake news propagadas por bolsonaristas alegando que ele fecharia igrejas ou interferiria nas liberdades de culto.
Fake news e evangélicos
Para os especialistas ouvidos pela DW, a raiz das diferenças do Lula 2022 para o Lula 2002, no que tange às campanhas, está na maneira como o oponente “joga o jogo”. Seguidor da mesma cartilha que norteia os extremistas de direita pelo mundo, Bolsonaro faz uma campanha baseada em acusações virulentas — e, apelando para o forte apoio de sua base evangélica, a pontaria é nas tais pautas de costumes.
“Em tempos de normalidade, de sucessão saudável na democracia, um partido ganha e outro perde, mas ninguém questiona as regras do jogo. Agora a gente está com o próprio jogo ameaçado. É muito delicado”, pontua Kerche.
“O bolsonarismo levou a pauta da campanha para onde quis, a zona dos costumes, tirando do centro a questão que favorece Lula, o debate sobre economia”, analisa o sociólogo Gabriel Rossi, professor de marketing político na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
E essa pauta apareceu com o potencial das viralizações e das fake news, em um cenário que não havia no 2002 ainda bastante analógico e off-line. Rossi argumenta que “as lógicas das redes sociais e de todo o ecossistema digital tornaram muito mais difícil combater o vale-tudo das eleições”.
“Uma das principais consequências desse cenário é a preocupante tribalização de grupos distintos, em uma dinâmica de confrontos diretos, atos beligerantes e fragmentação polarizada das discussões”, prossegue ele. “Esse jogo, que abandona os preceitos fundamentais de racionalidade da esfera pública e dá um tom bélico à comunicação política, fortalece a presença do anonimato e das chamadas fake news.”
Muitas vezes exploradas em notícias falsas, as pautas de costumes têm um motivo específico: o crescimento dos evangélicos no Brasil. O último censo, de 2010, está defasado e aponta que seriam 42 milhões no país. Mas pesquisas e estimativas mais recentes costumam situar esse número em algo na casa de 70 milhões. E isso está moldando o próprio conjunto que forma o Brasil.
“A sociedade brasileira se tornou mais voltada para a direita, com pendores mais conservadores e mais religiosos, com o aumento no número de evangélicos”, diz Lopes. “E o aumento do peso político das igrejas evangélicas, no Congresso, no Planalto e chegando agora ao Supremo Tribunal Federal. Há uma presença política dos evangélicos que se investem de uma missão.”
Por isso a carta do Lula em 2022 não foi direcionada ao mercado financeiro. Foi direcionada aos evangélicos. Nesta eleição, eles podem ser decisivos.