Lembro-me de quando devia ter dez para 11 anos e começar a ser assaltado por grandes paixões e questionamentos, típicos da transição da infância para a adolescência, olhar para o nosso cãozinho vira-latas, o Bambi, placidamente deitado no quintal, com seus olhinhos vivos e atentos, expressando a expectativa de ser chamado ou então de que eu lhe lançasse a carcomida bola de borracha com a qual costumava brincar, e sentir uma grande inveja dele. Para ele, a vida se resumia a comer, brincar e dormir, mas para mim… Para mim, a vida já começava a se tornar algo muito complicado: escola, lição de casa, sentimentos confusos: será que gosto mais daquela coleguinha de classe ou da vizinha do prédio ao lado? Foi a primeira vez em que constatei que ser humano é algo muito mais complexo que ser cão ou gato. Comecei a perceber que ser humano é ser assaltado por dúvidas, sentimentos contraditórios, ter de tomar decisões e, pior, assumir as consequências das escolhas feitas. Sim, seria muito mais fácil ser como Bambi… Com o tempo, entretanto, por mais que a vida tenha se complicado cada vez mais, comecei não só a aceitar a condição humana, como, aos poucos, a ver até graça, a gostar dela. Talvez porque tenha percebido que aquilo que é a nossa maior desgraça é também a nossa maior graça: a liberdade. Somos humanos, mas em flagrante contraste com todas as outras criaturas com as quais dividimos a existência neste planta, podemos escolher não ser humanos; ou, pelo menos, escolher viver não como humanos, mas como qualquer outra coisa: como animais ou… como deuses. O resultado, claro, será sempre desastroso, porém, de qualquer forma, possível.

+ Para entender Vladimir Putin é preciso ler Fiódor Dostoiévski

Ser ou não ser: eis a questão. É evidente que, por mais que pensemos que somos deuses ou que nos comportemos como animais enlouquecidos, não deixaremos nunca de ser humanos. Mas, humanos de que tipo? Existe uma maneira certa, boa, apropriada de sermos, de vivermos como humanos? Essa foi a pergunta que começou a ganhar corpo em meu coração e minha mente, principalmente a partir do momento em que ler e discutir os clássicos da literatura universal passou a ser não só minha maior recreação como também meu trabalho, minha principal forma de ganhar a vida. Os clássicos da literatura foram me ensinando que, efetivamente, apesar de termos o poder de viver de forma desumana ou inumana, só poderemos viver de forma plena e realizada quando escolhermos viver aquilo que é próprio do humano. Sim, aos poucos fui descobrindo que há uma maneira própria, apropriada, de ser humano, de viver humanamente. É exatamente sobre isso que nos falam os grandes clássicos, desde Homero, passando por Shakespeare, Dostoiévski, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. E toda vez que insistimos em desprezar essa maneira própria de ser humano não só causamos um estrago tremendo ao nossos semelhantes e ao nosso planeta, como também, principalmente, fazemos mal a nós mesmos. Toda vez que, consciente ou inconscientemente, vivemos de forma que não é própria do humano, o resultado é o adoecimento. Sim a doença física, psíquica, moral, espiritual, existencial. Portanto, viver aquilo que é próprio do humano não é apenas uma questão ética, moral, mas também – e fundamentalmente -, uma questão de saúde. Mas, como encontrar ou reencontrar aquilo que seria próprio do humano? Essa é a pergunta que norteia o livro que acabo de lançar pela editora Record, intitulado “É próprio do humano: uma odisseia do autoconhecimento e da autorrealização em 12 lições”. Partindo de uma das histórias mais antigas, icônicas e referenciais da história da humanidade – a “Odisseia” de Homero -, escrita no século 8 a.C, sempre dialogando com muitos outros clássicos da literatura, da filosofia e das ciências, proponho 12 lições sobre o que seria próprio do humano. Doze lições para reencontrarmos uma vida mais saudável, harmônica, humana. Num tempo em que parece que mais do que viver estamos “funcionando”, “operando” no automático e, por isso mesmo, adoecendo terrivelmente, reencontrar aquilo que nos faz humanos apresenta-se como algo não só essencial como também urgente.