Nunca na história das Copas houve um jogador como Pelé. Ele conquistou o maior objeto do desejo de qualquer futebolista por três vezes e continua sendo lembrado em prosa e verso até pelos “não gols” na Copa de 1970.Dando sequência à minha coluna anterior, quando escrevi sobre minhas emoções de adolescente com os triunfos da Alemanha em 1954 e do Brasil em 1958, vou avançar mais um pouco no tempo. Desta vez para contar das glórias da época de ouro do futebol brasileiro com a ascensão irresistível do rei Pelé e como vivenciei aqueles anos.

1962: O bicampeonato no Chile

Com a conquista da Taça Jules Rimet em campos da Suécia, uma euforia incontida tomou conta da torcida brasileira, e a expectativa por um repeteco na Copa do Chile era enorme. Não teve transmissão ao vivo pela TV, mas um consórcio formado pelas emissoras Tupi e Record gravava em videotape os jogos da seleção brasileira. As fitas eram enviadas do Chile para o Brasil, e as imagens do jogo eram mostradas no dia seguinte ao público brasileiro.

Pouca coisa mudou na seleção brasileira em relação a 1958, e sua comissão técnica fez o que pôde para colocar em campo mais ou menos o mesmo time titular da final na Suécia. Na estreia contra o México, apenas duas alterações: Mauro no lugar de Bellini e Zózimo no lugar de Orlando. O Brasil ganhou por 2×0, com gols de Pelé e Zagalo. Seriam os únicos gols dos dois nessa Copa.

Na partida seguinte, contra a Tchecoslováquia, o mundo desabou sobre a seleção brasileira. Ainda no primeiro tempo, Pelé sofreu uma lesão na virilha e passou a fazer número em campo porque substituições não eram permitidas. A contusão tirou Pelé da Copa. Todos temiam o pior diante da Espanha. Foi aí que Garrincha assumiu sua responsabilidade e, juntamente com Amarildo – o substituto de Pelé –, levou o Brasil ao Bi. Orlando Duarte conta que na final contra a Tchecoslováquia Garrincha estava com 39 graus de febre.

Nessa final contra os tchecos, a seleção brasileira entrou em campo com apenas três alterações em relação ao time da decisão contra a Suécia em 1958: Mauro, Zózimo e Amarildo substituíram respectivamente Bellini, Orlando e Pelé. Vitória por 3×1, e o Brasil se sagrou bicampeão. Foi a última vez que uma seleção nacional conseguiu defender o título obtido na Copa anterior.

E como foi que eu vi essa Copa?

Eu “vi” pela Radio Bandeirantes, que inovou sua transmissão e ajudou o torcedor a imaginar a partida. A emissora construiu um enorme painel à frente das escadarias da Catedral da Sé de São Paulo que reproduzia um campo de futebol com centenas de lâmpadas que cobriam toda a área do “campo”. Os locutores que narravam os jogos eram instruídos a fornecer a posição da jogada no campo para que o operador em São Paulo pudesse acender as lâmpadas de acordo com o posicionamento da bola.

Inacreditável, mas verdadeiro! Em dia de jogo do Brasil, a Praça da Sé estava abarrotada de gente não apenas para ouvir a transmissão, mas também para ver a dança das lâmpadas emulando o movimento da pelota.

Sei disso porque estive lá.

O fracasso de 1966

A Copa de 1966 na Inglaterra muita gente prefere esquecer, principalmente torcedores brasileiros e alemães. Eu me incluo nessa, mas muito mais pelo fracasso da seleção canarinho do que pela derrota dos meus patrícios na final.

Explico. Dessa vez, o preparo e a organização da seleção – marcas registradas de 1958 e 1962 – foram um desastre descomunal. Para começar, antes de viajar para a Europa, a seleção fez uma peregrinação por cinco cidades brasileiras diferentes para satisfazer os interesses de dirigentes e políticos. A primeira convocação teve 46 jogadores pelos mesmos motivos. Uma bagunça generalizada.

Além disso, houve também fatores externos que acabaram por determinar a eliminação precoce do Brasil. Um deles foi a extrema violência sofrida por Pelé desde a primeira partida da fase de grupos contra a Bulgária, que o Brasil venceu por 2×0. Foi a última partida que Pelé e Garrincha jogaram juntos na seleção, e cada um fez um gol. Pelé saiu de campo com lesão no joelho e cheio de hematomas. Não jogou contra a Hungria. No confronto decisivo com Portugal, o zagueiro Morais, além do volante Coluna, se encarregaram de caçar o Rei implacavelmente com seguidas e violentas faltas. Chegou um ponto em que Pelé se arrastava em campo de tanto apanhar e fazia apenas número.

Na época não havia cartões amarelo e vermelho. Foi uma verdadeira temporada de caça a Pelé com os resultados conhecidos. Brasil eliminado já na fase de grupos e Pelé, de tanto apanhar, acabou aprendendo a bater. A Copa de 1966 é considerada até hoje a mais violenta de todas além do seu baixo nível técnico.

1970 – O Tri do México e a coroação definitiva do Rei

Como não há mal que sempre dure, os campos do México reservaram para o Brasil a sua jornada mais brilhante em Copas do Mundo. Se até então ainda havia alguma dúvida sobre quem poderia ser coroado o Rei do Futebol, depois do futebol esplendoroso de Pelé que iluminou o estádio Jalisco, de Guadalajara, e depois, na final, o Azteca, da Cidade do México, não restou mais dúvida alguma.

Digam o que quiserem os atuais contestadores das façanhas de Pelé que provavelmente nunca o viram jogar. Nunca na história das Copas houve um jogador como Pelé, que deixou a sua marca indelével com personalidade, liderança, técnica e talento. Nunca na história das Copas houve um jogador que conquistou o maior objeto do desejo de qualquer futebolista por três vezes! Nunca na história das Copas houve um jogador como Pelé, que continua sendo lembrado em prosa e verso até pelos “não gols” na Copa de 1970.

Quem não se lembra? Eu me lembro.

Contra a Tchecolosváquia, um chute de 70 metros por pouco, muito pouco, não resultou no que poderia ter sido o gol mais espetacular de todos os Mundiais. Contra a Inglaterra, cabeceou fortemente uma bola ao chão na linha do gol de Gordon Banks, que acabou fazendo a defesa considerada até hoje a melhor de todas as Copas. Contra o Uruguai, deu um drible de corpo no goleiro Mazurkiewicz, completou o “drible da vaca” ao pegar a bola do outro lado, e desequilibrado tocou para o gol vazio. A bola passou a centímetros da trave.

O grito de gol nestas três oportunidades ficou atravessado na minha garganta e na garganta de milhões de torcedores do futebol-arte de Edson Arantes do Nascimento – simplesmente Pelé.

Durante a Copa de 1970, Pelé deu uma demonstração inequívoca e poderosa de sua técnica “estado da arte” em todos os seis jogos, especialmente diante dos adversários ex-campeões mundiais (Uruguai, Inglaterra e Itália). Parecia querer dizer: “Aqui quem manda é o futebol brasileiro!”

Aos 29 anos, estava no auge de sua forma física e, especialmente contra as rústicas defesas de Uruguai e Itália, fez valer também seu impressionante condicionamento corporal. No Livro de Ouro das Copas, Lycio Velloso Ribas destaca o repertório de Pelé naquele Mundial memorável:

“Pelé é uma combinação única de técnica, força, velocidade, visão de jogo, além de chutar com as duas pernas e de ser um exímio cabeceador. Mostrou essa última característica na final contra a Itália. Aos 18 minutos do 1º tempo, Rivelino mandou um balão em direção à segunda trave. Pelé de 1,72 m de altura, subiu um palmo a mais que seu marcador Burgnich (1,75 m) e de olhos bem abertos testou forte para o chão.”. Ocioso dizer que o goleiro Albertosi nada pôde fazer.

Naquela final inesquecível contra a Itália, Pelé fechou o jogo de forma brilhante. O placar anotava 3×1 para o Brasil. Faltavam cinco minutos para terminar o confronto, mas uma jogada coletiva de outra galáxia marcaria a história do futebol para sempre. Em velocidade, a bola passou de pé em pé por Gerson, Clodoaldo, Rivelino, Jairzinho, para finalmente chegar a Pelé, livre pelo meio. O Rei dominou a bola, percebeu pelo canto dos olhos a chegada fulminante de Carlos Alberto Torres e deu-lhe um passe magistral para decretar Brasil 4×1 Itália.

Para a seleção brasileira, a Copa do México foi o fecho com chave de ouro de uma época. Afinal, acumular três títulos mundiais em quatro Copas disputadas não é para qualquer um.

E para Edson Arantes do Nascimento, foi a sua consagração definitiva como o Rei do Futebol Pelé, primeiro e único.

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Atuou nos canais ESPN como especialista em futebol alemão de 2002 a 2020, quando passou a comentar os jogos da Bundesliga para a OneFootball de Berlim. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast “Bundesliga no Ar”. A coluna Halbzeit é publicada às terças-feiras.

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