19/11/2003 - 8:00
A paranaense Georgia Franco de Souza, dona de uma rede de cafeterias em Curitiba, a Lucca Cafés Especiais, segue um ritual extremamente rigoroso para tirar um legítimo expresso. Ela se recusa a pôr a bebida em uma xícara que não tenha o fundo ovalado, não deixa que o café chegue à mesa do cliente a uma temperatura acima de 90ºC e com um creme menor que cinco milímetros de espessura. Há explicações para tanta minúcia: o fundo oval deixa a bebida mais cremosa e homogênea, pois o líquido deságua formando uma espécie de turbilhão. Um café muito quente perde bons componentes e ganha novos, porém ruins. E o creme espesso tem a mesma função do colarinho no chope. Serve para manter a temperatura, realçar e concentrar os aromas. Exigências tolas? Quem experimenta a bebida sabe que o perfeccionismo de Georgia é, a rigor, uma arte. O resultado é um expresso encorpado, adocicado ? mesmo quando se coloca apenas uma pitada de açúcar ?, com sabor de avelã, cheiro de chocolate e que deixa um gosto tão suave na boca que seria uma heresia tomar um copo d?água em seguida. ?Os brasileiros têm um dos melhores cafés do mundo, mas não sabem apreciar nem preparar a bebida, como já fazem os europeus e americanos?, diz Georgia, que foi aprender sobre a ciência de tirar e beber café em território francês, numa escola de culinária na Provença.
Aroma. Georgia se tornou uma das maiores especialistas no assunto e hoje faz parte de um seleto time de brasileiros que está levando o café a sério. Em São Paulo, 20% do espaço dedicado ao produto nas gôndolas já é ocupado por grãos especiais. Somente neste ano a capital paulista ganhou quatro novas casas que servem café de grife: a Santo Grão, a Anquier (do padeiro francês Olivier), a Cafeera (já em sua segunda loja) e a Suplicy Cafés Especiais. ?Passei dois anos pesquisando até descobrir que os grãos exportados são bons, mas o que fica na nossa xícara é de péssima qualidade?, diz Marco Suplicy, que abriu em outubro a cafeteria que leva o seu sobrenome. ?Mais de 90% do que se bebe no Brasil não é nem classificado.? Na sua loja, por exemplo, só entram os grãos vindos de cinco fazendas específicas, cada qual com características diferentes. Para esse pessoal, a bebida ganhou status de vinho. E vocabulário também. Classifica-se um simples cafezinho pela sua acidez, doçura, corpo, coloração ou aroma.
Os próprios donos de restaurantes passaram a se preocupar com a qualidade do café servido. A Cafeera vende o seu grão para restaurantes e empórios sofisticados. A Lucca faz o mesmo na região Sul do País. O restauranter Alessandro Segato, comandante da cozinha do seu Empório Segato e do La Risotteria em São Paulo, mal sabia a diferença entre um grão arábica e um robusta até começar a sua peregrinação de três meses pelas fazendas de Minas Gerais em busca de um blend perfeito para servir a seus clientes. Agora, Segato sabe que o tipo arábica é de melhor qualidade porque é cultivado em altas altitudes e que o robusta é mais amargo. Ele até arrisca dizer as características de um café da Colômbia (encorpado e adocicado) e da Jamaica (suave), seus prediletos depois do brasileiro. Pouca gente se dá conta, mas ele tem um motivo sério para tanta preocupação. ?Se o retrogosto (o gosto residual, que costuma ficar na boca por até 20 minutos) for desagradável, o cliente vai logo pensar que a comida não caiu bem?, explica Segato. Depois de descobrir que o café pode influenciar a decisão de uma pessoa voltar ou não ao seu restaurante, Segato decidiu criar uma bebida com a sua marca: o Caffé D?auttore. A mistura, segundo o seu ?criador?, é robusta, tem um leve toque de avelã, acidez reduzida e boa cremosidade. Ela é levada à mesa do cliente com pé-de-moleque, suspiro, chocolate ou amanteigado.
Etiópia. A reverência tardia ao café de qualidade faz algum sentido. Essa é uma das bebidas mais novas que existem. Original da Etiópia, ela ficou conhecida no mundo em 1600 ? o vinho e a cerveja foram descobertos 1.000 anos antes de Cristo. Até por ser jovem, ainda não existem regras definitivas para se servir um expresso. Os acompanhamentos escolhidos por Segato, por exemplo, geram polêmica. Há quem defenda que, após uma refeição, o café deve ser servido apenas com água, para limpar o paladar. ?Biscoitinhos e chocolates de menta escondem o sabor original do café?, acredita André Ficcs, barista do Café Astro, responsável por ensinar aos clientes do Astro como tirar um bom expresso. O fato é que não existe certo ou errado. O par perfeito para o cafezinho é uma escolha pessoal. Adoçar ou não a bebida talvez seja o assunto mais controverso. Uma ala dos especialistas não se conforma em colocar açúcar em um expresso de qualidade, sobretudo o brasileiro, que tem uma doçura natural. ?O açúcar é totalmente desnecessário?, diz Concetta De Prizio, professora do curso de barista do Senac. Outra turma já prega que o açúcar, quando apenas salpicado, realça o sabor do café, assim como o sal em uma carne. As polêmicas não param aí. Discute-se até sobre o tempo de vida de um expresso ?
do momento que ele sai da máquina até chegar às mãos do cliente. Para quem entende do riscado, um segundo a mais ou a menos pode fazer toda a diferença no sabor e no aroma finais. Bem-vindo ao
novo mundo do café.