“Faço um pedido público de desculpas em nome de todos os funcionários da Petrobras”, disse um circunspecto Aldemir Bendine, presidente da estatal. A declaração humilde – uma raridade nas altas cúpulas corporativas do País – veio nos minutos finais da entrevista coletiva concedida na noite da quarta-feira 22, no Rio de Janeiro, após a divulgação do tão esperado balanço de 2014, ano em que a maior empresa brasileira era comandada por Graça Foster e embarcou numa crise sem precedentes em sua história. “A Petrobras foi uma vítima, estamos com um sentimento de vergonha pelo que ocorreu, mas continuamos acreditando nesta empresa”, disse ele.

“Os funcionários, eu entre eles, têm orgulho de trabalhar aqui.” Mal assumiu e Bendine, o ex-presidente do Banco do Brasil escalado por Dilma Rousseff para colocar ordem na petroleira, já tem um bom motivo para se orgulhar. Depois de cinco meses de adiamentos sucessivos, ele conseguiu publicar o polêmico balanço sem nenhuma ressalva dos auditores da PriceWaterhouse Coopers (PwC), virando uma página sombria e abrindo caminho para o resgate da Petrobras do atoleiro na qual foi mergulhada nos últimos anos.

A PwC exigia que a estatal incluísse no balanço o impacto da corrupção – fartamente comprovada pelas investigações da Operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014 –, e reavaliasse os ativos em função das mudanças das premissas contábeis provocadas por decisões incorretas de gestão e falhas na execução de projetos. Não foi um processo sem dor. A última linha do balanço é desastrosa: no ano passado, a estatal amargou um prejuízo líquido de R$ 21,6 bilhões. Foi o primeiro resultado negativo desde o R$ 1,68 bilhão perdido em 1991 e a maior perda, em termos nominais, dentre as empresas abertas brasileiras.

O vermelho superou até mesmo os R$ 17,4 bilhões perdidos pela OGX, do empresário Eike Batista, em 2013. Refeitas as contas, os ativos foram reduzidos em R$ 50,8 bilhões, para R$ 636,4 bilhões. Não à toa, Bendine comparou a situação a um “desastre de avião”. Pior do que o prejuízo em si, que foi também marcado pela queda dos preços do petróleo no mercado internacional, foram as suas causas: corrupção e má gestão. A estatal reconheceu que o desvio de recursos com propinas a alguns servidores custou R$ 6,2 bilhões, entre 2004 e 2012, envolvendo o primeiro e o segundo mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro de Dilma Rousseff.

Para chegar a esse número, uma vez que corruptos e corruptores não costumam passar nem pedir recibo, os auditores partiram das informações obtidas nos 14 acordos de delação premiada e de leniência fechados entre as autoridades responsáveis pelas investigações e os participantes da gigantesca ladroagem. A estimativa baseou-se na informação de que a taxa de propina cobrada na execução dos contratos por 27 empresas privadas era de 3% sobre os valores faturados. A maior parte dos desvios, R$ 3,4 bilhões (55% do total) ocorreu na diretoria de Abastecimento, comandada pelo ex-diretor Paulo Roberto Costa e por seu braço direito, o ex-gerente Pedro Barusco.

Outros R$ 2 bilhões, ou 32%, sumiram nas atividades da diretoria de Exploração e Produção, sob a responsabilidade de seu ex-titular Renato Duque. Trata-se de um esquema longevo, que foi se aperfeiçoando com o passar do tempo e, finalmente, foi desbaratado. Ao depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras na quinta-feira 23, Augusto Mendonça Neto, executivo da prestadora de serviços Toyo Setal e um dos delatores flagrados, afirmou que o cartel de empresas envolvidas na Lava Jato já se reunia para combinar resultados de licitações em meados dos anos 1990. Segundo ele, em 2005 o grupo foi ampliado e ganhou efetividade ao combinar, com os diretores da Petrobras, quais seriam as empresas convidadas para participar das licitações.

As áreas comandadas por Costa e Duque centralizavam a cobrança de propinas, sustentou Mendonça Neto. “Essas duas diretorias só conseguiram fazer isso porque atuavam em conjunto”, disse, na CPI. Essa diferença teve de ser reconhecida como perda. Parte do dinheiro deverá ser recuperado. “Devemos começar a receber as primeiras compensações já em maio”, afirmou Bendine. No entanto, a estimativa é de que o dinheiro que deve retornar será uma fração do total desviado. Barusco, por exemplo, deverá devolver R$ 97 milhões aos cofres da estatal. Até o momento, o valor que pode ser devolvido pelos delatores do esquema chega a R$ 500 milhões.

DERRAPADAS A segunda causa do prejuízo foi a má gestão. Decisões de investimento incorretas fizeram explodir os orçamentos iniciais ou obrigaram a Petrobras a desistir de alguns projetos já iniciados. O caso mais emblemático foi o do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj, uma aposta gigantesca na área de refino de combustível que se revelou um verdadeiro triângulo das Bermudas do dinheiro público. Refino é um dos calcanhares de Aquiles da estatal, que não consegue refinar combustível suficiente para atender o mercado interno. Em 2014, por exemplo, foram consumidos, em média, 2,46 milhões de barris de óleo equivalente por dia.

O refino, porém, ficou abaixo de 2,27 milhões de barris. A diferença, de quase 200 mil barris por dia, é processada em refinarias nos Estados Unidos e na Argentina, deixando a Petrobras na incômoda posição de importar derivados. Por isso, quando a exploração do pré-sal mostrou-se viável, em meados da década passada, a estatal lançou projetos ambiciosos de refino, como o Comperj e a refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. O Comperj começou a ser construído em 2008 e deveria ter entrado em operação em 2012. A promessa era elevar a capacidade de refino da estatal em 165 mil barris de petróleo por dia.

O custo inicial previsto era de US$ 8 bilhões, mas problemas com licenciamento ambiental e desapropriações atrasaram o cronograma, elevando a fatura para US$ 13,2 bilhões. Cerca de 85% das obras estão concluídas, mas ainda não há um prazo para a retomada do projeto. Inauguração, só em 2018, se tudo correr bem. A correção da rota no Comperj custou R$ 21,8 bilhões à Petrobras na conta de redução de ativos promovida por Bendine e Ivan Monteiro, seu homem de confiança nas finanças da Petrobras. Outro ajuste bilionário ocorreu na refinaria Abreu e Lima, prevista para refinar 200 mil barris por dia. No total, ela custaria US$ 2,3 bilhões, mas esse valor multiplicou-se para US$ 18,5 bilhões.

Nela, a redução dos ativos custou R$ 9,1 bilhões à estatal. As refinarias Premium I, em Bacabeira (MA) e Premium II, em Pecém (CE), que começaram a ser planejadas em 2008 e receberiam investimentos de US$ 30 bilhões, foram canceladas. A baixa contábil cresceu R$ 2,8 bilhões. Um dos desafios de Bendine é evitar desastres administrativos como esses no futuro. Não por acaso, boa parte das declarações do presidente da estatal, ao apresentar o balanço, trataram de melhorias no processo de tomada de decisões. “Fizemos um redesenho dos processos, agora as decisões estão divididas em várias fases, com mais sinergia e mais escalas decisórias”, afirmou. “Isso mudou toda a cultura organizacional da companhia.”

No curto prazo, o principal temor do mercado é o pesado passivo da empresa, considerada a petroleira mais endividada do mundo. Na ponta do lápis, a dívida líquida da Petrobras encerrou 2014 em R$ 282 bilhões, um crescimento de 27,3% sobre 2013. A relação entre dívida líquida e a geração de caixa (medida pelo Ebitda) subiu de 3,52, em 2013, para 4,77, em 2014. Isso significa que, se pudesse usar cada centavo gerado por suas operações apenas para quitar as dívidas, a Petrobras levaria quase cinco anos para zerar seu passivo. “Esse é um dos indicadores mais importantes para os investidores internacionais, e o valor divulgado ultrapassa níveis históricos”, diz Raphael Figueiredo, analista da corretora Clear.

Não está bom, e pode piorar ainda mais. Cerca de 80% desses compromissos são internacionais, vinculados à variação do dólar. A dívida de 2014 foi calculada considerando-se a taxa de câmbio de R$ 2,66, vigente em dezembro do ano passado. Quando divulgar os resultados do primeiro trimestre de 2015, provavelmente no dia 15 de maio, a estatal terá de atualizar essa taxa de câmbio para R$ 3,19. “A cada aumento de R$ 0,10 na taxa de câmbio, a dívida líquida cresce R$ 10,6 bilhões”, diz o analista Flávio Conde, da empresa Independent Research. “Com o dólar do primeiro trimestre, a dívida pode chegar a R$ 342 bilhões.”

DIVISOR DE ÁGUAS Apesar de tudo, a reação do mercado no primeiro pregão após o balanço foi surpreendente. Depois de subirem quase 60% antes da publicação dos números, as ações preferenciais da estatal chegaram a cair 8,4% durante a manhã da quinta-feira 23, recuando para um mínimo de R$ 12,02, devido à decisão da empresa de não pagar dividendos referente ao exercício de 2014. Fecharam o dia cotadas a R$ 12,92, com uma queda de 1,5%. Já as ordinárias, as queridinhas dos investidores internacionais, subiram 5,2%, para R$ 14,06, maior nível desde novembro passado.

Como explicar essa animação? Simples: mesmo com um prejuízo bilionário, a divulgação dos resultados retirou um enorme componente de incerteza e os resultados foram saudados como um divisor de águas na empresa. “O balanço da Petrobras é o melhor de uma companhia aberta no mundo, pois foi publicado sem nenhuma ressalva da auditoria”, diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, que foi ministro das Comunicações e presidente do BNDES no governo Fernando Henrique Cardoso. “Aos poucos, o governo está conseguindo segurar a barra na crise e se impor.

A partir de agora, vai recuperar a governabilidade.” Nem todo mundo está tão animado. “Não podemos soltar rojões só porque temos um balanço. Seria um exagero. A Petrobras apenas voltou à posição de largada”, diz David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Igualmente céticos, outros analistas também destacam pontos positivos. Apesar de paralisar ou desacelerar obras devido aos problemas detectados pela Lava Jato, a Petrobras conseguiu extrair petróleo em quantidades recordes no ano passado. Os 2,67 milhões de barris diários representam um crescimento de 5,1% frente a 2013.

Lucros e dívidas podem mudar de acordo com critérios contábeis, mas barris de petróleo são menos sujeitos à contestação. “O nível de produção passou a ser o indicador mais importante do ponto de vista do investidor”, diz Luiz Francisco Caetano, analista da corretora Planner. Ao anunciar os resultados, Bendine revelou que a exploração das reservas do pré-sal já responde por 800 mil barris diários. “Esses campos, que são extremamente produtivos, foram colocados em operação em tempo recorde”, disse ele.Mesmo assim, poucos analistas recomendam comprar as ações da Petrobras.

Além da ausência de dividendos, o principal risco é uma diluição das participações. Atualmente, R$ 72 bilhões em empréstimos, ou 26% do total da dívida, foram contratados junto aos três grandes bancos públicos – BNDES, BB e Caixa. Uma maneira rápida de reduzir o endividamento da empresa seria converter essas dívidas em ações. Tudo ficaria nas mãos do governo federal, sem ameaçar o controle estatal. Para os minoritários, porém, isso representaria uma pesada diluição de suas participações. Assim, dos 13 analistas consultados por DINHEIRO, apenas o americano Bank of America recomenda a compra das ações.

Nove recomendam mantê-las e três aconselham a venda. 
A avaliação de Gustavo Gattass, analista do BTG Pactual, é clara. “Em nossa opinião, investir nas ações da Petrobras depende da capacidade de a companhia reduzir sua alavancagem sem ter de diluir seus acionistas de maneira relevante”, diz. “A empresa emitiu muitos sinais positivos nessa direção, mas o que nós vimos na divulgação do resultado não nos transmite confiança que os sinais positivos serão seguidos por uma ação consistente.” Gattass avalia em 80% a probabilidade de a Petrobras ter de realizar um aumento de capital nos próximos 12 meses.

Um dos desdobramentos mais nefastos da Lava Jato foi a paralisação de uma parcela importante dos investimentos na economia brasileira. A despeito das investigações, sozinha, a Petrobras investiu US$ 44 bilhões em 2014 e prevê investimentos de US$ 29 bilhões neste ano, o que a torna uma das maiores – senão a maior – investidora do País. Segundo um levantamento da Tendências Consultoria, a Formação Bruta de Capital Fixo no País deverá ficar entre R$ 800 bilhões e R$ 900 bilhões em 2015, e o impacto da Petrobras tem um peso de 20% nessa conta.

A volta à normalidade, com a divulgação do balanço e a retomada do programa de investimentos em bases mais sólidas, representa um alívio para a cadeia de fornecedores. “O balanço coloca um ponto final na série de incertezas que pairavam sobre a Petrobras”, diz Reinaldo Garcia, presidente e CEO da GE para a América Latina. Apesar de todas as dificuldades, o faturamento e a margem operacional cresceram em dois dígitos no ano passado, salienta. “É evidente que existem desafios no curto prazo, como a captação de recursos, mas a vocação da empresa continua sendo a de prosperar.”

Se a preocupação é com a capacidade de a Petrobras conseguir financiamento, Bendine acalmou o mercado citando que as necessidades de caixa da empresa em 2015 estão garantidas. A estatal obteve R$ 9,5 bilhões emprestados de bancos brasileiros Em 17 de abril, anunciou um financiamento de R$ 4,5 bilhões com o Banco do Brasil, um limite pré-aprovado de R$ 2 bilhões com a Caixa Econômica Federal e um financiamento pré-aprovado de R$ 3 bilhões com o Bradesco. Além disso, ela conseguiu a liberação de um empréstimo de US$ 3,5 bilhões do Banco de Desenvolvimento da China e mais US$ 3 bilhões do britânico Standard Chartered.

Outras formas de captação, de acordo com os analistas, não devem ser realizadas neste ano. “Não acreditamos que a empresa acesse o mercado de capitais com emissão de dívida neste ano, apenas em 2016”, diz Henrique Florentino, analista da UM Investimentos. No entanto, Ivan Monteiro, vice-presidente financeiro da Petrobras, afirma que a empresa estuda voltar a mercados de onde está distante há tempos. “Uma alternativa são as captações domésticas em renda fixa”, diz. Há mais de dez anos, a estatal fez uma bem-sucedida emissão de debêntures indexadas ao IGP-M que pagavam apetitosos juros de 13,5% ao ano e foram um sucesso entre investidores individuais.

Agora, há alternativas como debêntures de infraestrutura, que proporcionam isenção fiscal ao investidor. “Todas essas alternativas serão estudadas”, disse Monteiro. Bendine e Monteiro preparam uma série de medidas para reforçar a estrutura de capital da empresa. A mais óbvia, que valeu a Bendine o apelido de “Vendine”, entre os funcionários, é a venda de ativos, exceto os ligados ao pré-sal que já estão em produção. Uma eventual venda da participação na Braskem poderia levantar R$ 3 bilhões.

Uma possibilidade seria formar parcerias com empresas privadas, como Bendine fez no BB, na área de seguros e previdência. “Podemos compartilhar risco e capital”, disse. “Por que não? Somos uma companhia aberta.” É verdade. A Petrobras está mais aberta do que nunca e continua firme na posição de maior empresa brasileira. Se conseguir arrumar a casa e extirpar a bandalheira de vez, Bendine terá cumprido a missão mais difícil de sua vida como executivo, fazendo com que os barris da Petrobras se encham de petróleo e lucros novamente.

Os primeiros condenados da Lava Jato

O juiz federal Sergio Moro, de Curitiba, responsável pela investigação da Operação Lava Jato, condenou os primeiros oito acusados de participar do esquema de corrupção na Petrobras. O doleiro Alberto Youssef (1) recebeu nove anos e dois meses de prisão e uma multa de R$ 763 mil. Ele ainda espera o julgamento de 13 ações penais. O ex-diretor de abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa (2), pegou sete anos e seis meses de detenção e terá de pagar R$ 408 mil. Ele aguarda a decisão de outros sete processos.

Moro também determinou o confisco de R$ 18 milhões de cada um deles. No entanto, a maior pena foi aplicada no empresário Márcio Bonilho (3), sócio da Sanko Sider, empresa responsável pelo superfaturamento de produtos e serviços em obras da empreiteira Camargo Corrêa. Foram 11 anos e seis meses de cárcere e uma multa de R$ 741 mil. Bonilho terá de enfrentar, ainda, mais um julgamento. Os outros cinco condenados são ligados ao delator Youssef – quatro deles sócios do Labogen, laboratório sediado em Indaiatuba( SP), usado pelo doleiro como lavanderia para o dinheiro desviado. A Petrobras poderá determinar como será feita a divisão dos R$ 18,6 milhões desviados pelos sócios da Sanko Sider e do Labogen, que terão de ressarcir a estatal.

Colaboraram: Hugo Cilo e Márcio Kroehn