Os brasileiros se acostumaram, nos últimos anos, a tomar as décadas de 80 e 90 como perdidas para o desenvolvimento. Desde a semana passada, com a divulgação pelo IBGE de um monumental conjunto de estatísticas sobre o século 20, talvez o Brasil comece a se perguntar se o século inteiro não foi perdido. Do ponto de vista da criança cuja foto abre essa reportagem, representante dos 53 milhões de brasileiros que sobrevivem abaixo da linha de pobreza, a trajetória que trouxe o Brasil de 1900 a 2000 terminou em fiasco. O século que começou sob o signo do encilhamento ? a grande bolha de crédito posterior à Abolição de 1888, encerrada em 1902 pelo brutal saneamento de Campos Salles ? terminou em 1999 com a desvalorização do real e um acordo de US$ 40 bilhões com o FMI. Em 1900 também houve um acordo com a Casa Rothschild, a potência financeira de então. A jovem República ganhou 13 anos sem pagar amortizações em troca de uma política monetária tão rígida que quebrou até o Banco do Brasil. O acordo implicou, entre outras coisas, na queima periódica de papel moeda para reduzir o meio circulante e evitar a inflação. Soa familiar? Mais uma prova de que o Brasil mudou, mas sob certos aspectos continua o mesmo.

Ao longo do século 20 os números foram generosos com o Brasil. O Produto Interno Bruto cresceu 110 vezes, de R$ 9 bilhões para R$ 1 trilhão; a renda per capita subiu de R$ 516 para R$ 6.056, crescendo quase 12 vezes. Praticamente erradicou-se o analfabetismo e a expectativa de vida mais que dobrou, de 33 para 68 anos. Lido por esses indicadores, o Brasil tornou-se um país de renda média, situado no meio da escala de bem-estar das nações. Mas quando se olha para as estatísticas que retratam mais de perto a vida das pessoas ? como os salários ?, vislumbra-se um cenário de desastre. O salário mínimo de 1940, que valia o equivalente a R$ 797, chegou a 2002 com valor de R$ 227. O País abstrato avançou, mas a renda dos habitantes retrocedeu. ?O século 20 no Brasil foi marcado pelo investimento em recursos físicos em detrimento do humano. O País ficou menos atrasado, porém mais injusto?, afirma Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio.

Apesar das melhorias gerais ? que, em boa medida, resultaram de avanços científicos como a vacinação, que atingiram todos os países ?, o Brasil chega ao século 21 com apenas 47% dos seus habitantes vivendo em casas com esgoto. 73% dos brasileiros não concluem o ensino médio; mais de 14% são tecnicamente indigentes (espantosos 22,6 milhões) e em 12,9% dos casos os brasileiros morrem de forma violenta. O Brasil disputa com Coréia do Sul e Taiwan o título de país que mais cresceu neste século, mas segue com padrões de saúde africanos e indicadores educacionais que nações vizinhas alcançaram no século 19. É também um dos países mais violentos e um dos mais desiguais do planeta. A despeito de ter a maior população negra fora da África, é dos que mais discriminam. A democracia racial brasileira não impede que os negros ainda ganhem menos da metade do que ganham os brancos.

Em adição aos males antigos, nos últimos 20 anos instalaram-se no País dois fenômenos estruturais tão inéditos quanto nefastos: a estagnação econômica e o desemprego. Depois de absorver no século passado quase cinco milhões de imigrantes, a economia que já foi a mais dinâmica da América descobre em 2003 que 14% dos seus cidadãos não têm emprego e 55% deles vivem na informalidade. O coeficiente de esperança encolheu na mesma proporção das vagas ? e isso explica ao menos parte da barbárie crescente nas relações sociais. O IBGE registra que os crimes contra o patrimônio mais que duplicaram nos últimos 40 anos. ?Voltamos ao século 19, quando as pessoas pobres não tinham emprego, mas apenas estratégias de sobrevivência?, diz João Paulo dos Reis Velloso, ex-ministro do Planejamento dos governo militares. O fenômeno do desemprego é tão brutal que deixou de afetar apenas os pobres. Passou a corroer a pirâmide social brasileira, inaugurando o que ainda não se conhecia no País do futuro ? a mobilidade social descendente. A classe média, que fora trabalhosamente construída com a industrialização ao longo do século 20, começou na década de 90 a encolher. ?O que está acontecendo é que os filhos não estão conseguindo alcançar o patamar dos pais?, resume o economista Carlos Alonso de Oliveira, professor da Unicamp. ?Se continuarmos sem crescer o fenômeno vai se agravar.?

Para o administrador João Pedro Marchina, de 47 anos, a situação já se agravou. Filho de uma próspera família de classe média, ele freqüentou boas escolas privadas, ganhou automóvel aos 18 anos e recebeu ajuda paterna para comprar a primeira casa. Agora está sem emprego desde o início dos anos 90 e vive como microempresário do comércio, com uma bomboniére de 10 m2. A situação é tão dura que ele voltou a morar com os pais ? e é o pai, com sua aposentadoria de contador, quem ajuda a pagar a faculdade dos dois netos. ?Meu padrão de vida desabou, mas se as coisas melhorarem quero ampliar o negócio?, diz Marchina. É claro que essa situação é diferente ? e melhor ? do que a da massa de brasileiros do início do século 20. Os 17 milhões de 1900 formavam uma multidão quase homogênea de destituídos. Ao mudar-se do campo para a cidade ? em cem anos a população urbana saltou de 31 para 81% ? a pobreza mudou. ?Era uma pobreza brutalizada, quase africana?, diz o professor Marcio Pochmann, secretário de Trabalho do Município de São Paulo. ?Agora a pobreza está associada ao desemprego e à desigualdade de renda.?

A desigualdade é um fenômeno tão persistente que chega a entediar a audiência culta brasileira. Ela tornou-se parte da paisagem econômica e social, tão familiar quanto as montanhas do Rio de Janeiro. Celso Furtado, decano dos economistas nacionais, pôs o dedo na ferida ao participar, na segunda-feira 29, da apresentação do estudo do IBGE ? o mais vasto, completo e ambicioso apanhado de dados já realizado no País. ?Os problemas estão todos expostos?, disse ele. ?Mas a sociedade não tem vontade de mudar.? O fenômeno da desigualdade, expresso pelo fato de que 1% dos cidadãos detém 50% da renda nacional, é uma peculiaridade do chamado modelo brasileiro. Países semelhantes ao nosso têm em geral arquiteturas sociais menos perversas. México e Argentina têm Índices de Desenvolvimento Humano ? que medem renda, expectativa de vida e acesso à educação ? bem melhores que o do Brasil. No ranking da desigualdade, medido pelo índice Gini, o País disputa a liderança com Estados da estatura da Namíbia, Serra Leoa e Suazilândia ? e a situação não tem melhorado. A evolução do Gini mostra que o Brasil era em 1960 mais equânime do que em 1999.

Economistas e historiadores tendem a atribuir a desigualdade brasileira a fatores consensuais ? como descaso com a educação básica, demora em abolir a escravidão, concentração de propriedade da terra e persistência da inflação ? mas há elementos polêmicos na discussão, como o modelo econômico. ?O desenvolvimentismo praticado entre os anos 50 e 80 foi essencialmente concentrador de renda?, afirma Gustavo Franco, presidente do Banco Central na gestão Fernando Henrique. ?A concentração era algo que estava na sua essência.? Delfim Netto, ministro em dois governos militares do período, desdenha o diagnóstico. ?No regime autoritário o salário e o emprego cresciam 3% ao ano?, diz ele. E ironiza. ?Naquele período em que tudo estava errado, a economia crescia 7% ao ano e a carga tributária era de 25% do PIB?, afirma. ?Depois que os liberais consertaram tudo, o Brasil não cresce mais de 2% ao ano, há 14% de desemprego e a carga tributária é de 37% do PIB.?

O debate entre intervencionismo e liberalismo econômico tem ecos profundos na história do século 20. A rigor ele vem desde o final do Segundo Império, quando papelistas e metalistas se batiam no Senado em posições simétricas à dos desenvolvimentistas e liberais atuais. A discussão sempre girou em torno do papel do Estado na economia. Para alguns o Estado é o instrumento que permitiu os 50 anos mais gloriosos da economia brasileira, entre 1930 e 1980, quando o País cresceu de forma acelerada e montou sua estrutura industrial. Ícones desse período são as presidências de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, que deram ao País leis trabalhistas civilizatórias, a política de substituição de importações e um planejamento modernizador. ?Nessa época deixamos de ser um país medonho para ser um país promissor?, diz o professor João Manoel Cardoso de Mello, da Unicamp. Desde 80 o Brasil tem desabado nas estatísticas globais de desenvolvimento. Com a divulgação do PIB do primeiro trimestre deste ano, já é possível calcular que o Brasil caiu para a posição de 15º na economia global, atrás de Espanha, México, Coréia do Sul e Índia. Até 1998 o Brasil era oitavo do ranking.

Acima da polêmica ideológica sobre o papel do Estado, as estatísticas do IBGE mostram alguns fatos incontestáveis. Um deles é que nesses cem anos a máquina pública cresceu continuamente ? a arrecadação de impostos saltou de 10% do PIB em 1900 para os atuais 37% ?, atingindo patamares suecos. Mas isso não implicou em melhoria proporcional dos serviços de saúde, educação, segurança, transporte e assistência social. Eles continuam equivalentes ao de qualquer país do Terceiro Mundo. Logo, a diferença entre os impostos suecos e os serviços paraguaios foi apropriada por alguém. ?A carga tributária cresceu 10% nos anos 90 para pagar juros aos rentistas?, acusa Cardoso de Mello. Mas, ao mesmo tempo, os gastos em políticas sociais, que representam 20% do PIB, também foram em parte apropriados pelos mais ricos. O economista José Márcio Camargo, da PUC do Rio, acena com o caso da educação, que fica com 4% do PIB ? um quarto disso vai para as universidades públicas, cuja clientela básica está na camada mais rica da população. O mesmo caso vale para Previdência pública, pelo qual 0,5% da população se apropria de algo como 2% do PIB nacional. Ela transformou-se de expressão de racionalidade social em instrumento de concentração de renda.

?O Estado brasileiro é caro e ruim, mas nem sempre foi assim?, pondera o historiador Jorge Caldeira. Através do século 20 e até a década de 80, diz ele, a grande virtude do Brasil foi adaptar-se ao cenário internacional. O País era liberal e aberto até a década de 30, quando a economia mundial era aberta e liberal. Cresceu. Entre 1930 e o final da década de 70, quando o mundo se fechou, o Brasil também se fechou e o Estado interveio. O País cresceu de novo. ?Perdemos o barco na década de 80, quando a economia global reabriu e nós fizemos a opção errada por fechar?, diz Caldeira. Agora, com a economia mundial inclinada à recessão e ao protecionismo, qual seria a opção para surfar o século 21?

É inevitável que vindo à luz em um período de recessão, as estatísticas do IBGE provoquem reflexões sombrias sobre o passado e
projetem uma luz de incerteza sobre o futuro. Poucos vão se importar com o detalhe nostálgico de que em 1937 havia 780 chafarizes em todo o Brasil, dos quais 77,8% ficavam no Rio de Janeiro. Mas as pessoas
talvez se interessem em reter na memória três fatos essenciais sobre o século 20:

? Primeiro: ele foi muito melhor do que o século anterior (1800 a 1900), um período de pura e simples estagnação, durante o qual o Brasil passou de ser uma economia maior que a dos EUA em 1800 para ser 14 vezes menor em 1900.

? Segundo: até a década de 80 o século 20 foi bom para o Brasil, embora não tenha sido igualmente bom para todos os brasileiros.

? Terceiro: nesse século de enorme dinamismo e riqueza, o Brasil desperdiçou oportunidades e não foi capaz de resolver os problemas que bloqueavam seu desenvolvimento.

Será péssimo se, dentro de 100 anos, as pessoas olharem para os brasileiros do século 21 (que somos nós) perguntando o mesmo que nós perguntamos sobre os nossos antepassados do século 19 ? por que motivo eles se apegaram a interesses mesquinhos e comprometeram o futuro do Brasil? Por que retardaram em pelo menos 80 anos a desumana e anacrônica escravidão? Por que eles não abriram o caminho para o futuro com a necessária determinação?