Fez zero grau em Paris no sábado 15, mas a sensação térmica na Place David en
Fert-Rochereau era outra, mais quente e confortável. Milhares de parisienses se juntaram ali, logo depois do almoço, para iniciar às duas da tarde uma marcha pacifista de seis quilômetros até a histórica Place de La Bastille, onde 250 mil pessoas resumiram seus ideais nos cartazes de Non a La Guerre. ?Conseguimos, ao menos, adiar o disparo do primeiro tiro pelos americanos?, disse à DINHEIRO o fisico e professor de Filosofia Michel Paty, da Universidade de Paris, um dos participantes do protesto. A exemplo do que se viu na capital francesa, por toda a Europa passeatas com centenas de milhares de participantes se repetiram, criando o fato novo da pressão popular (?O público é a nova superpotência?, percebeu o The New York Times) sobre os mais altos organismos diplomáticos. Uma mensagem dirigida diretamente a Washington D.C., àquela altura castigada por uma grossa nevasca, e corporificada na surpreendente figura do conservador presidente francês Jacques Chirac. Nos últimos dias ele se transformou no principal líder mundial a se contrapor aos planos do presidente americano George Bush de atacar o Iraque. ?Agora, 4 bilhões de pessoas sabem que a França existe?, resumiu Chirac a um de seus colaboradores no palácio presidencial do Eliseu, como se prestasse contas de sua tarefa de resgate do prestígio internacional francês no mundo.

?Os franceses estão falando grosso porque internamente têm a casa arrumada?, assinala um diplomata na elegante embaixada brasileira à margem direita do rio Sena. A economia do país, fincada nos pólos industrial, tecnológico e de agronegócios, tem conseguido repetir nos últimos três anos um crescimento acima de 2% do Produto Interno Bruto, que esbarra em generosos US$ 1,5 trilhão. O setor exportador, responsável por 35% desse volume, igualmente vem se mostrando imune aos espasmos do comércio mundial, com desempenho estável desde o ano 2000. A redução da jornada de trabalho de 40 horas semanais para 37 horas e meia, colocada em vigor dois anos atrás, teve o mérito de atenuar os efeitos da recessão global, impedindo que a taxa histórica de 6% de desemprego avançasse. ?O tempo livre das pessoas está sendo um grande motor para a indústria do lazer?, afirma a professora de Economia Lourdes Casanova, do Instituto de Administração de Paris. O turismo de estrangeiros, no mesmo sentido, está em franca expansão. Depois dos atentados às torres gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, Paris voltou a ser a cidade mais visitada do planeta. Os cafés estão cheios, as lojas trabalham com pequenos estoques e filas se estendem nas entradas dos cinemas e teatros. Nos Alpes, é missão quase impossível se conseguir vaga em hotel neste período de inverno. Na Costa Azul, com a charmosa Cannes e sua agenda lotada de feiras e exposições mundiais, a dificuldade é a mesma. Tudo somado, os franceses têm conseguido arrecadar anualmente quase US$ 150 bilhões com a receita turística.

Motivações históricas em torno do petróleo iraquiano também explicam o pacifismo do chefe de Estado francês. As relações comerciais entre França e Iraque datam de 1924, quando a recém-criada Companhia Francesa de Petróleo (CFP) começou a explorar os poços do país árabe. Sua sucessora Erap nunca deixou de retirar dali grande parte de sua matéria-prima. A Elf, em seguida, deu continuidade a essa política, hoje desenvolvida pela megacompanhia ElfTotalFina, de capital franco-italiano. Em paralelo aos negócios, todos os chefes de Estado franceses dos últimos trinta anos receberam em Paris ou foram a Bagdá festejar Saddam Hussein. Em 1972, o presidente George Pompidou abriu os salões do Eliseu para o, à época, novo homem forte do Iraque. Dois anos mais tarde, o próprio Chirac, então primeiro-ministro, brindou com Saddam na capital iraquiana um acordo para exportações francesas. Em Paris, em 1986, o socialista François Miterrand tratou pessoalmente com o chanceler Tarek Aziz a manutenção das antigas relações comerciais. Ao sair a campo contra a guerra, o Chirac de hoje está sendo coerente com esse passado, temeroso de que ao esmagar Bagdá os Estados Unidos assumam sozinhos o poder numa das regiões mais estratégicas do planeta. Do ponto de vista francês seria péssimo se o país, que já tem ascendência política sobre Israel, domina fisicamente o Afeganistão, intimida o Irã e compra as bases militares da Turquia, possa, também, ter aos seus pés as reservas petrolíferas do Iraque.

No comando de um país seguro economicamente, o presidente Chirac tem-se sentido à vontade para brilhar. Mesmo a recente ameça americana de boicotar os produtos franceses não foi suficiente para mudar sua postura. Na segunda-feira 17, em Bruxelas, diante de uma reunião extraordinária do plenário da União Européia, ele passou um pito no grupo de 13 países do Leste europeu que se inclinavam pela posição norte-americana de atacar o Iraque ? ?perderam uma boa oportunidade de ficarem quietos? ?, manteve sob sua órbita a Itália do ultraconservador presidente Silvio Berlusconi e obteve uma declaração conjunta sem meias palavras. ?A guerra não é inevitável?, firmaram os integrantes da aqui chamada eurolândia. Relatos da imprensa francesa informam sobre um Chirac permanentemente dependurado ao telefone, acertando os movimentos de resistência à guerra da China à Russia, passando pela Alemanha (leia reportagem à página 36) e os países árabes. Nos Estados Unidos, o líder francês também vai ocupando o centro do noticiário. Uma das publicações mais influentes do mundo, a americana Time, dedicou sua capa imediatamente posterior à marcha de Paris ao próprio Chirac, completada pela manchete ?Dê uma chance à Paz?. ?A comparação não me agrada, mas é forçoso dizer que ele está cada dia mais parecido com o grande De Gaulle?, lembra o professor Paty, um dos 250 mil parisienses na passeata do sábado 15. A memória dos atos do general tem vindo à tona com freqüência porque ele foi o primeiro presidente francês do pós-guerra a peitar os americanos. Em 1966, De Gaulle simplesmente mandou desalojar a sede da Otan do prédio que a organização ocupava nas beiradas do bosque de Boulogne, para transformar o lugar na pacata universidade de Delphine. Desde então, a Otan passou a ter sede em Bruxelas, mas os franceses têm-se recusado sistematicamente a ter representantes em reuniões militares sob a liderança americana. ?O sonho de Chirac é um mundo multipolar em que a França possa atuar como advogado do mundo em desenvolvimento?, diz Pierre Lelouche, ex-assessor de Chirac e membro da Assembléia Nacional. Tal qual embalava De Gaulle.

O jogo de sobe-e-desce da popularidade também ajuda a entender por que, de repente, um líder conservador sai a campo com bandeiras tradicionais dos progressistas. Ao cabo de seus cinco primeiros anos de mandato, Chirac passou por uma verdadeira provação na eleição presidencial do ano passado. Só venceu o ultradireitista Jean Marie Le Pen graças aos votos de socialistas e comunistas. Para manter essa base, precisa fazer gestos como os de agora. Pesquisas internas têm mostrado que apenas 7% dos franceses querem a guerra, contra 80% que apóiam as ações presidenciais. Outro ponto importante na demografia política francesa é o fato de 10% da população do país ser composta por árabes e seus descendentes. Ir abertamente contra um país árabe, nessa matemática, significa alimentar uma oposição interna que pode no limite patrocinar atos terroristas. De Washington, somando as variantes do momento, o presidente Bush não parece sensibilizado. ?A partida acabou?, disse, prometendo atacar na próxima semana. Para Chirac e os franceses, porém, ainda é tempo de tentar reverter o jogo.