O homem pula sobre a poça d?água atrás da Gare Saint Lazare, estação de trem no centro de Paris. Os pés roçam o espelho líquido. Sua figura e a sombra projetada debaixo dele parecem repetir o salto acrobático da bailarina no cartaz ao fundo. Essa fotografia de 1932 é, para muitos especialistas, a mais emblemática de Henri Cartier-Bresson, o grande fotógrafo do século XX. Cunhou uma expressão ? ?o instante decisivo? ? e dela nunca mais se afastou. Naquela manhã chuvosa, Cartier-Bresson levava no pescoço uma Leica alemã com lente de 50mm. Fez o disparo a uma velocidade de 1/125. Um átimo de segundo depois, ou antes, e a fotografia não existiria. Registrou, como que a acompanhar uma frase de Carlos Drummond de Andrade a respeito de uma perda amorosa repentina, a cena ?até o limite das folhas caídas na hora de cair?. Derrière la Gare Saint Lazare é o pivô de uma magistral exposição na Biblioteca Nacional da França, a BNF. São 400 flagrantes de um gênio do jornalismo e da composição, em cartaz até 27 de julho. Tem a pompa destinada a nomes como Picasso, Matisse, Chagall e Renoir. ?Não quis mostrar apenas uma seleção das melhores fotos de Cartier-Bresson?, diz o curador Robert Delpire. ?A idéia é apresentar o homem por trás do mito, sua excepcional coerência?. Aos 94 anos de idade, há 30 distante das máquinas, dedicado aos pincéis e às tintas, Cartier-Bresson ainda cultiva refinada falsa modéstia. ?A fotografia é apenas um instrumento mecânico, e o desenho, sim, é uma arte?, diz. ?As fotos devem ser vistas em livros, não nas paredes?.

Cartier-Bresson toca num ponto chave e fascinante: o da transformação de registros jornalísticos, a história em preto-e-branco, em peças de arte cada vez mais valorizadas. ?Na última década, as coleções fotográficas tiveram seus preços multiplicados em três vezes?, diz Paul Sack, colecionador americano. Há uma procura maior, e natural, pelas imagens antigas ? elas carregam a origem da fotografia, tratam mais de nitrato de prata do que de estética. Há dois anos, uma ampliação de Gustave Le Gray (1820-1884), La Grande Vague Sète, foi leiloada por US$ 890 mil. A foto do homem na Gare Saint Lazare, de Bresson, assinada na margem, saiu por US$ 5100. O retrato de Matisse, de 1944, em que as pombas e o pintor pousam em calma e plenitude, como se diante deles não houvesse um fotógrafo, foi vendido por US$ 6.600. Evidentemente, as fotografias jamais alcançarão o patamar das telas clássicas. Na semana passada, a Sotheby?s de Nova York bateu o martelo num óleo de Pierre-Auguste Renoir, de 1882, Dans les Roses (Madame Leon Clapisson) por
US$ 23,5 milhões. A extraordinária diferença de preços de um quadro de Renoir e de uma foto de Cartier-Bresson talvez não reproduza a distância real entre os artistas – embora Cartier-Bresson, um dos fundadores da reportagem fotográfica, insista em dizer que sempre foi um jornalista, e não um artista.

Há, na fotografia, um evidente aspecto técnico que a limita no mercado de transações: a rigor, apenas o negativo é original, todo o resto são cópias. Mas há critérios. Uma ampliação trabalhada no ano em que o fotógrafo apertou o disparador vale mais que outra realizada algum tempo depois. São as chamadas fotografias de safra. Retratos autografados também chegam a patamares mais elevados. ?No contato, Cartier-Bresson escolhia uma única imagem quando todos os outros seres normais hesitavam entre 20 ou 30?, diz o jornalista Bernard Mérigaud. ?Por isso, ele sempre teve muito cuidado com o trabalho de laboratório de suas fotos?. Aquelas que comprovadamente foram manipuladas por ele em parceria com o laboratorista, em tiragens de safra, podem chegar até a US$ 20 mil ? nada têm a ver com os pôsteres vendidos em Paris ou Nova York.

Georges Fevre trabalhou durante mais de três décadas com as fotos de Cartier-Bresson no lendário laboratório Picto. Alinhavaram uma cumplicidade rara. Na ponta do lápis, Fevre tem as cifras que transformam o repórter em monstro sagrado. ?Dos 17 mil filmes com 36 poses, num total de 700 mil registros, apenas duas ou três fotos de Cartier-Bresson foram reenquadradas?, diz Fevre. Uma delas é a imagem da Gare Saint Lazare. Ele sempre foi muito atento à traição com as imagens. Impunha às redações um fio negro ao redor das fotos, de modo a evitar cortes. Cuidados desse gênero o transformaram no olho do século XX ? e ajudaram a tirar as fotografias do papel de imprensa para levá-las ao museu.