Em Luxemburgo, Schengen foi o berço da livre circulação europeia. Quarenta anos depois, controles impostos por Alemanha e França irritam moradores e políticos locais.Há quarenta anos, um bucólico povoado luxemburguês ajudaria a escrever a história da União Europeia (UE). A poucos passos da Alemanha e da França, Schengen serviu de símbolo de uma Europa sem fronteiras e emprestou o nome ao tratado que, em 1985, daria o primeiro passo para a criação da maior zona de livre circulação no mundo, o Espaço Schengen.

Mas os controles de fronteira impostos pela Alemanha desde setembro de 2024, e agora renovados por mais seis meses, chegam até Schengen, no que muitos consideram ser uma medida carregada de simbolismo político. Num vilarejo que testemunhou o nascimento da livre circulação e respira a multiculturalidade transfronteiriça, não falta quem vocalmente se orgulhe de ser um ícone do sonho europeu e se oponha aos controles fronteiriços.

Desde o ano passado, a Alemanha mantém um posto de controle permanente no único acesso à cidade via rodovia, sob a justificativa de conter a migração indocumentada e combater o contrabando. Já a França realiza controles pontuais na região.

“É claro que sou totalmente contra os controles. Um acordo foi assinado aqui em Schengen, e é um dos mais importantes da história da Europa,” diz Michel Gloden, prefeito do vilarejo. Também são contrários aos controles de fronteira os prefeitos das duas cidades vizinhas: a francesa Apach e a alemã Perl. “Farei campanha constante para que os controles sejam abolidos, porque vejo que isso traz discórdia à região e realmente não traz benefícios para ninguém.”

“Fronteiras no coração europeu”

Em novembro, um protesto organizado por um partido pró-Europeu circulou as três cidades em Luxemburgo, França e Alemanha. Os críticos se queixam, sobretudo, do simbolismo político dos controles, além do trânsito nas fronteiras, dos custos das operações policiais e dos seus potenciais efeitos negativos sobre a economia.

“Colocar controles de fronteira na Alemanha significa colocar fronteiras em nossos corações”, diz Isabel Arens, coorganizadora do protesto, que concorreu às eleições federais alemãs deste ano no estado da Renânia-Palatinado, na fronteira com Luxemburgo. “Schengen é um lugar muito importante para nós, porque, como europeus, vemos que aqui é o ponto de partida para a livre circulação na União Europeia.”

Com 692 habitantes, Schengen tem como cartão postal os monumentos em homenagem à Europa na margem do rio Mosela, que divide Luxemburgo dos franceses e alemães. Foi a bordo de um navio ali que, em 1985, autoridades de Luxemburgo, Alemanha, França, Bélgica e Holanda assinaram o Tratado de Schengen.

Nas pontes que cortam o rio, é intenso o trânsito de trabalhadores transfronteiriços que moram na Alemanha e trabalham em Luxemburgo. Na volta para a casa, entre às 16h e 18h, os motoristas ficam presos no trânsito gerado pelo posto de controle alemão por, em média, 30 minutos.

“É realmente uma situação bizarra ter controles de fronteiras e a placa de Schengen no mesmo lugar”, diz Birte Nienaber, professora de Geografia Política da Universidade de Luxemburgo.

Português é língua não oficial

A livre circulação de pessoas não apenas facilitou a mobilidade como, também, a migração interna entre europeus, uma vez que ampliou o direito de residência dentro do continente. Foi especialmente o caso para os portugueses, que historicamente emigram a Luxemburgo de forma massiva desde os anos 1960, atuando sobretudo em setores como construção, limpeza e de restaurantes.

Os portugueses que moram no país passaram de aproximadamente 30 mil em 1981 para 90 mil em 2024. Grande parte deles vive nos arredores da fronteira alemã. Para os que moram na região de Schengen, o tratado significou mais do que uma nova reputação local ou praticidade no dia a dia.

“Penso que quem questiona talvez o Tratado de Schengen sejam aquelas pessoas que, de certa forma, nunca se identificaram com o que foi assinado, ou nunca acharam que o tratado poderia ser bom para elas”, diz Bruno Simões, empreendedor português em Schengen. “Na realidade, o tratado é bom para a maioria das pessoas.”

Hoje, o português é a segunda língua materna no país, falada como primeiro idioma por 15% da população. Fica atrás apenas do luxemburguês e supera os outros dois idiomas oficiais nacionais, o francês e o alemão.

O contingente lusófono vem sendo, ainda, engrossado pela chegada de brasileiros, que dobraram de 1,6 mil para 3,2 mil entre 2015 e 2024, muitas vezes depois de já terem emigrado para Portugal.

Multiculturalismo entre fronteiras

Em Schengen e seus arredores, as quatro línguas corriqueiramente se ouvem ao mesmo tempo. É o caso da rotatória dos Três Países, do lado alemão da fronteira, que tem uma saída para cada vizinho, com fluxo constante de carros cruzando entre eles.

Na beira da estrada, fica um restaurante que orgulhosamente exibe as bandeiras da Alemanha, da França e de Luxemburgo, ao lado de uma da UE e outra da Turquia, que tem uma das maiores comunidades de imigrantes em território alemão.

“Os clientes vêm de todo lugar. Da França, de Luxemburgo e viajando pela Holanda e pela Bélgica”, diz Osman Şenol, dono do restaurante, que emigrou da Turquia em 1973. “Portanto, temos também uma equipe multicultural. Não fazemos distinção entre as nações.”

Ao norte de Schengen, a brasileira Sol Pires mora a 20 minutos da Alemanha, onde faz compras em Trier, para, assim como é comum na região, evitar os altos preços de Luxemburgo. Numa rodovia que leva à cidade, há outro ponto de controle fixo da polícia alemã.

“Já fui a França, Bélgica e Alemanha no mesmo dia. Explicar isso para as pessoas é até complicado, porque parece meio surreal”, conta a brasileira, cujo marido e quase todos os vizinhos são portugueses. “Quando os controles foram anunciados, todo mundo ficou assustado.”

Projeto histórico sob estresse

Mas, quando o Tratado de Schengen foi assinado, uma vida sem fronteiras era quase impensável na Europa. Para os moradores de Schengen, talvez fosse ainda mais inimaginável que o pacato vilarejo produtor de vinhos se tornaria mundialmente conhecido.

“Eu não tinha um sentimento especial”, diz Roger Weber, ex-prefeito de Schengen, ao se relembrar de 1985. “Todos diziam que as fronteiras seriam fechadas novamente, que não duraria muito tempo. Para a maioria das pessoas aqui, este não era um acordo importante.”

O contrato inicial previa a extinção do controle de fronteiras entre os cinco signatários, movidos por interesses econômicos sob influência da França e da Alemanha, os mesmos países que, agora, vigiam as suas fronteiras. A integração europeia seria um processo de longo prazo, que exigiu décadas para ser colocado em vigor e fazer nascer a versão atual do Espaço Schengen, onde moram 400 milhões de pessoas.

“Começou com cinco países. Então havia sete, nove, 12 e assim por diante. Hoje, falamos da área Schengen, que tem 29 países”, diz Martina Kneip, diretora do Centro Europeu Schengen, cujo museu no vilarejo recebe 45 mil visitantes do mundo todo ao ano.

Neste ano, os monumentos e o museu passam por obras que custam cerca de 20 milhões de euros para o governo luxemburguês. Schengen se prepara para uma comemoração de 40 anos da assinatura do tratado em junho, num contexto em que a Europa sem fronteiras se viu sob progressivo estresse ao longo da última década.

“Nós realmente não deveríamos desistir. Há problemas, assim como há problemas no mundo todo, mas nós deveríamos pensar: qual é a solução para estes problemas?” prossegue Kneip. “Definitivamente não é fechar as fronteiras.”

Eficiência em dúvida

A imposição de controles fronteiriços pela Alemanha e, depois pela França, são a mais recente e evidente dentre sucessivas crises desde 2015, que incluem a reação dos governos à chegada de migrantes e refugiados às fronteiras externas da União Europeia, percepções de que a segurança doméstica está ameaçada e a pandemia de covid-19.

“Quando o coronavírus chegou, foi a primeira vez que se introduziram controles [desde 1985]. Desde então, as crianças falam em ‘cruzar a fronteira’ para a Alemanha”, diz o prefeito Gloden. “Os valores europeus precisam ser permanentemente lembrados.”

Especialistas e políticos locais discordam que o controle na fronteira com Luxemburgo seja necessário ou eficiente. Das 50 mil pessoas impedidas de entrar na Alemanha em cinco meses, 371 tentaram cruzar por Luxemburgo — o equivalente a 0,75% do total —, e nem todas as rotas dos dois países são permanentemente controladas.

Em Schengen, dois quilômetros separam a rota controlada pela polícia alemã, que conecta rodovias para rotas de longa distância dos lados do rio Mosela, e uma ponte fronteiriça sobre o mesmo rio, que serve aos motoristas que usam apenas estradas menores.

“A única lógica que eu, como cientista e trabalhadora transfronteiriça, posso ver nisso é a política,” adiciona Nienaber. “Nossa vida do jeito que a conhecíamos está em perigo, e isso vai afetar todos nós, porque Schengen não é apenas sobre pessoas, mas também sobre bens e capital se movendo. Então, se isso for destruído, vai ferir os países, a União Europeia e o Espaço Schengen, se ele ainda existir no seu 40º aniversário.”

Luxemburgo deporta brasileiros

À DW, a polícia alemã afirmou que os controles são importantes para proteger a segurança doméstica, acrescentando que aos controles permanentes se somam operações móveis e que já conseguiu reduzir o congestionamento desde o ano passado. “Queremos saber quem está vindo para a Alemanha e quem quer nos visitar,” disse Stefan Döhn, porta-voz da Polícia Federal alemã no posto de controle em Trier.

Com o seu pequeno território rodeado por fronteiras por todos os lados, Luxemburgo não monitora suas fronteiras. Depois que a Alemanha renovou o controle de todas as suas fronteiras a partir de março de 2025, o país decidiu levar o caso à Comissão Europeia.

Em vez de vigiar suas fronteiras, a polícia luxemburguesa concentra a busca por imigrantes indocumentados no interior do seu território. Em 2024, os brasileiros foram a nacionalidade mais deportada, com 62 pessoas forçadas a deixar o país.