23/07/2003 - 7:00
Meses atrás, um grupo de turistas desembarcou no paradisíaco arquipélago de Fernando de Noronha. Seria mais
uma das centenas de excursões realizadas pela CVC, a maior agência de viagens do País, não fosse pelo guia. Sujeito bem-humorado e falante, ele descrevia com detalhes e entusiasmo juvenil as belezas naturais do lugar para seus acompanhantes. Mal sabiam eles, mas o tal guia era o dono da própria CVC. ?Adoro relembrar os bons momentos do passado?, recorda Guilherme Paulus. ?Foi guiando os clientes que comecei.? São mais de trinta anos na estrada. Hoje, aos 54 anos, este administrador de empresas de estatura mediana e calvície acentuada, é um sobrevivente. Enquanto ícones do turismo brasileiro, como Soletur e Stella Barros, sucumbiam às crises cambiais e à fuga de clientes, Paulus construiu um império que fatura US$ 220 milhões e atende quase 700 mil turistas por ano. Mas ele quer mais e prepara o mais ousado vôo de sua vida profissional. ?Quero criar uma empresa aérea?, conta ele com exclusividade à DINHEIRO. ?Até o organograma da nova companhia já está pronto.? Paulus mantém na gaveta uma carta de crédito de, no mínimo, US$ 15 milhões. O dinheiro está reservado para o início de montagem de uma frota de cinco Boeings 737-300 e 737-400.
Antes, porém, de levantar vôo, a CVC resolveu zarpar para alto-mar. Na semana passada, a empresa anunciou o fretamento do navio de cruzeiro francês R-5 Blue Dream por US$ 8 milhões. O transatlântico, com capacidade para 750 passageiros, percorrerá toda a costa brasileira em 88 dias. A abundância de planos milionários trouxe dúvidas ao mercado: será que a companhia tem fôlego financeiro para tanto? ?Temos dinheiro em caixa para fazer os investimentos?, diz Paulus. E para reafirmar sua disposição, acrescenta: ?Algumas pessoas do Departamento de Aviação Civil (DAC) e da Embratur já sabem do meu projeto?.
Não se trata de uma viagem delirante de Paulus. Seu objetivo é criar uma espécie de escudo contra o enorme poder de fogo que uma empresa resultante da fusão Varig/TAM poderia ter. ?Estamos esperando apenas que a fusão da TAM com a Varig saia para ver como o setor vai ficar?, diz ele. A CVC depende das companhias aéreas ? e o inverso também é verdadeiro. Na alta temporada, a agência freta 90 vôos semanais da TAM. No restante do ano, o número cai pela metade. ?O poder deles é gigantesco. As companhias aéreas ficam reféns?, diz um especialista em aviação. As operadoras proporcionam equilíbrio operacional para as empresas aéreas ao fretar vôos quando a aeronave está parada. Por isso, a entrada da CVC com uma linha de aeronaves próprias pode tirar o sono das companhias. A média de ocupação dos aviões fretados pela CVC é de 90%, acima dos 57% do mercado. Some-se a isso o estrondoso número de pessoas que viajam pela agência. Foram 645 mil turistas em 2002 e, para este ano, a previsão é de 700 mil. Muitos deles, órfãos das operadoras falidas.
Que a empresa está preenchendo uma lacuna deixada pela Soletur e Stella Barros não há dúvidas. Porém, como todas as companhias do setor, corre muitos riscos. Para entender o que a palavra risco significa basta ver como funciona o setor. Para conseguir preços mais baratos, as operadoras compram antecipadamente todos os assentos de um vôo, os quartos de hotel e, no caso da CVC, fretam até um navio inteiro na expectativa de vender tudo. Se a agência não consegue comercializar os pacotes, perde muito dinheiro. Só em Porto Seguro, na Bahia, por exemplo, a CVC tem cinco hotéis que hospedam apenas os turistas da agência. Já nas Serras Gaúchas, em Gramado, ela é dona do Hotel Serrano. No caso do cruzeiro, a empresa espera vender 80% dos pacotes até novembro. ?Quem comprar os pacotes antecipadamente ganhará descontos?, diz Valter Patriani, diretor de vendas. ?Se eles não conseguirem vender os pacotes vão levar um tombo?, diz um concorrente. Paulus se diz calmo com a situação. ?O risco existe, mas nós temos experiência no ramo?, diz. Ele recorda que em 1989 comprou 100 mil passagens da Vasp. ?Vendemos tudo em apenas sete meses?, vangloria-se.
O arrojo também se estendia para sua política de vendas. Os clientes têm sido seduzidos por preços mais baixos e o parcelamento em até 12 vezes. Enquanto as outras operadoras davam comissão de 10% para agentes de viagem, a CVC destinava 12%. Outro trunfo é sua rede de lojas: são 76 pontos, além de 4 mil agentes associados espalhados pelo País. Mais: 36 dessas lojas estão localizadas em shopping centers e ficam com suas portas abertas até as 22 horas todos os dias da semana. Os concorrentes só abrem até as 18 horas.
Mas o que garantiu uma travessia sem arranhões pela crise do setor foi a agilidade nas decisões. ?A maioria das operadoras concentrava as operações no mercado internacional. A CVC mudou seu foco para o mercado nacional?, diz Paulus. No auge da paridade cambial, em 1994, 60% dos pacotes da empresa eram internacionais e 40% internos. Com a desvalorização, a proporção mudou. Hoje, são 95% de pacotes internos e 5% para o exterior.
O jogo de cintura acompanha Paulus desde os primórdios da CVC. Em 1972, ele dirigia um grupo de turistas em um cruzeiro pela Argentina. Lá, conheceu o então deputado estadual Carlos Vicente Cerchiari, que pretendia montar uma agência em Santo André, seu reduto eleitoral. Cerchiari propôs-lhe uma sociedade. Paulus aceitou e juntos batizaram a agência com as iniciais do deputado. Quatro anos depois Cerchiari deixou a empresa e a responsabilidade ficou com Paulus. Os cinco funcionários da agência, contando sua mulher Luiza, rebolavam para manter as contas em dia. Ainda mais quando o governo criou o chamado depósito compulsório para viagens internacionais. ?Eu quase quebrei.? A saída foi organizar pacotes rodoviários para os metalúrgicos do ABC. ?Comecei a fazer roteiros para todas as montadoras e metalúrgicas?, conta. Na Ford, Paulus montou um calendário mensal de promoções para os funcionários que estivessem em férias. Um de seus passageiros era o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. A amizade lhe valeu uma vaga no Conselho Nacional de Turismo por indicação do agora presidente da República. Ambos, aliás, têm muito em comum, a começar pelo orgulho em relação ao próprio passado. Lula caminha com desenvoltura pelas fábricas, assim como fazia em seus tempos de metalúrgico. Paulus sente-se à vontade quando volta ao passado e conduz grupos de turistas como fez meses atrás em Fernando de Noronha.