19/11/2008 - 8:00
DINHEIRO – Qual é o verdadeiro significado da vitória de Barack Obama?
MARIO GARNERO – Muitas pessoas têm feito uma leitura mais superficial, que diz respeito à questão racial. Nesse aspecto, a eleição tem valor histórico, mas representa apenas um passo a mais na evolução da participação dos negros na sociedade americana. Basta lembrar que dois dos últimos chefes do Departamento de Estado, Colin Powell e Condoleezza Rice, são afrodescendentes. O aspecto mais relevante, a meu ver, é a virada de página na questão do terrorismo. Obama representa um mundo pós-terrorista, ou seja, um mundo em que os Estados Unidos voltarão a atuar de forma multilateral.
DINHEIRO – A guerra ao terrorismo chegou ao fim?
GARNERO – De certa forma, sim. O terrorismo está moribundo. Um exemplo disso é a Líbia, onde o líder Muammar Khadafi renunciou ao terrorismo, afastou-se da Al-Qaeda e hoje é recebido nos salões do mundo. Países que antes estavam no chamado eixo do mal, como a Coréia do Norte e a Síria, hoje dialogam com os Estados Unidos. E mesmo o Irã tende a ter uma aproximação negociada e pacífica com o governo de Barack Obama.
DINHEIRO – O que isso significa para o Brasil?
GARNERO – Uma grande janela, porque somos o líder natural da América Latina. Somos também um fator de contenção e pacificação de conflitos na região, o que nos coloca na posição de interlocutor privilegiado dos Estados Unidos. Havendo esse diálogo, surgirão oportunidades também na área econômica, a começar pelo etanol, e também no campo geopolítico.
DINHEIRO – Obama não terá outras prioridades na economia, como a própria crise americana?
GARNERO – Certamente. Mas a grande ênfase da política econômica do novo governo será ajudar a classe média. E isso passa pela questão energética. Um indicador central do humor do americano médio é o preço do galão da gasolina. E Obama também já disse várias vezes que pretende reduzir a dependência dos Estados Unidos em relação ao Oriente Médio.
DINHEIRO – Mas ele também foi financiado pelo lobby do milho. Isso não tende a amarrar sua gestão?
GARNERO – Não. A tarifa de US$ 0,54 sobre o etanol brasileiro terá de cair mais cedo ou mais tarde. Só que isso não pode ser feito de uma vez. Primeiro, porque criaria problemas para o Brasil. Sem a tarifa, todos os nossos usineiros exportariam para os Estados Unidos e haveria desabastecimento no mercado interno. Segundo, porque isso também criaria problemas para os produtores de etanol de milho. A saída natural é uma redução gradual e escalonada da tarifa.
DINHEIRO – Isso vai acontecer?
GARNERO – Vai. E uma prova disso é a ADM, maior produtora de etanol dos Estados Unidos e do mundo, estar investindo no Brasil. Eles próprios sabem que a proteção não pode durar para sempre. Estão aqui, pensando em exportar para lá.
DINHEIRO – Em relação à crise americana, qual será a sua duração?
GARNERO – Penso que ela não durará mais do que dois anos. Sabe por quê? Porque nenhum país reúne tanto capital intelectual e tanta capacidade de gestão como os Estados Unidos. Além disso, Obama está cercado dos melhores nomes possíveis. Ao lado dele, estão pessoas como Paul Volcker, Warren Buffett e Robert Rubin, pessoas com experiência prática e conhecimento histórico. E haverá ainda uma grande novidade na sua gestão.
DINHEIRO – Qual é?
GARNERO – O cruzamento interpartidário. Muitos republicanos farão parte da equipe de Obama. Um deles deve ser o secretário de Defesa, Robert Gates. Além disso, Colin Powell foi outro republicano de peso que declarou apoio a Obama. Fala-se também no Jamie Dixon, do JP Morgan, para a secretaria do Tesouro.
DINHEIRO – O sr. vislumbra uma grande coalizão?
GARNERO – Sim, os Estados Unidos vivem uma crise econômica de grandes proporções, que deverá aumentar a coesão interna do país. Outro nome que terá influência na administração Obama é o da senadora Hillary Clinton. Ainda que permaneça no Senado, ela terá uma posição estratégica.
DINHEIRO – Além do etanol, que outras oportunidades o sr. vislumbra para o Brasil?
GARNERO – Uma delas é o comércio. Na minha opinião, o Brasil deveria pedir um waiver do Mercosul para tentar negociar diretamente um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Com o Mercosul, o Brasil acabou se prendendo aos interesses de países como Uruguai, Argentina e Paraguai, que nem sempre correspondem aos dos nossos empresários. Vários países têm feito acordos com os Estados Unidos. O Nafta, por exemplo, foi uma iniciativa do México, e ainda há muita gente que fala em anexação. Recentemente, Coréia do Sul e Colômbia fizeram acordos bilaterais. O Peru também está fazendo. Não há nenhuma razão para que o Brasil se exclua do maior mercado do mundo.
DINHEIRO – Essa não é a linha do Itamaraty.
GARNERO – Mas tudo pode mudar.
DINHEIRO – E no campo político? O sr. vê espaço para ampliação do G-8 nesta próxima reunião em Washington?
GARNERO – Obama será o presidente de um mundo multipolar e isso, de fato, abre oportunidades para o Brasil. Hoje, existe claramente uma disputa geopolítica entre Estados Unidos e Europa, onde a França tenta liderar essa reforma das instituições de Bretton Woods. Nesse jogo, surge a possibilidade de que o Brasil ganhe mais espaço, mas é preciso também empurrar a porta. O Brasil precisa saber se vender melhor como uma economia de US$ 1,5 trilhão, que logo será maior do que a da Itália e a de outros países do G-8, como a própria França. Precisamos também participar mais de outros organismos internacionais, atuando em todas as comissões da ONU, e não apenas pedindo mais espaço no FMI ou no Conselho de Segurança.
DINHEIRO – Essa crise é mesmo a maior desde a Grande Depressão de 1929, como muitos dizem?
GARNERO – Não penso de maneira tão negativa. Num mundo conectado e dominado pela alta tecnologia, a crise se alastrou de forma muito mais rápida e também irá embora mais cedo. Desta vez, diferentemente do passado, há um esforço coordenado dos principais países para resolver os problemas. Nos anos 30, cada um caminhou numa direção oposta.
DINHEIRO – Precisamos de um FMI e um Banco Mundial mais fortes?
GARNERO – A primeira grande crise das instituições de Bretton Woods, na verdade, aconteceu há mais de 30 anos. Na década de 70, o sistema financeiro global era integrado no padrão-ouro e os Estados Unidos decidiram pular fora. Foi quando Richard Nixon disse aquela famosa frase: agora, somos todos keynesianos. Hoje, qualquer emergente de peso, como os do Oriente Médio ou mesmo do grupo dos BRICs, tem mais reservas do que o FMI. O mundo mudou muito.
DINHEIRO – Essas instituições terão papel secundário?
GARNERO – Não sei se elas resolverão a crise, mas sei que os Estados Unidos têm grande capacidade de regeneração. Nos anos 70, houve essa crise do padrão-ouro e vários bancos comerciais enfrentaram dificuldades. Nos anos 80, houve a falência das empresas de poupança, as chamadas savings and loans. Agora, é o mercado hipotecário. O fato é que eles sempre encontram uma solução.
DINHEIRO – Não estamos assistindo então ao fim do império americano?
GARNERO – O orçamento militar dos Estados Unidos, na casa dos US$ 600 bilhões, é ainda maior do que a soma dos de todos os outros países. Como dá para falar em fim de império numa situação dessas? Vai demorar muito.
DINHEIRO – O sr. está indo à Califórnia para um encontro com o governador Arnold Schwarzenegger. O que ele quer do Brasil?
GARNERO – Ele está mais do que disposto a importar o etanol do Brasil. A Califórnia poderá até oferecer compensações tributárias, que eliminariam a tarifa de US$ 0,54. Além disso, Arnold Schwarzenegger é hoje um dos grandes líderes da agenda verde no mundo. Lá, ele assinará uma parceria com o governador Eduardo Braga, do Amazonas.
DINHEIRO – Quais são os pontos mais importantes?
GARNERO – Ela irá tratar da cooperação nas áreas de pesquisa, políticas públicas e financiamento. Uma idéia é criar fundos voltados para a preservação ambiental.
DINHEIRO – Como o sr. avalia o legado da era Bush?
GARNERO – Bush governou numa situação muito específica. Com oito meses de governo, ele teve de enfrentar a maior ameaça à segurança interna dos Estados Unidos em tempos de paz, que foi o 11 de setembro. Seu governo foi marcado por esse desafio e a guerra ao terrorismo foi vencida. Uma avaliação mais precisa da sua gestão deverá ser feita daqui a dez ou 15 anos, quando a história será mais generosa. Além disso, ele vem tendo um comportamento extremamente elegante na transição de governo.
DINHEIRO – Bush tinha uma sintonia direta com o presidente Lula. A conexão entre Obama e Lula será boa?
GARNERO – Depois de conhecer Bush, o presidente Lula me disse algo sábio sobre como as pessoas perdem tempo com o preconceito. Os dois tiveram uma empatia muito forte logo no primeiro encontro, porque são diretos e objetivos. Obama parece mais introspectivo, mas tem uma história de vida que se assemelha à do presidente Lula, no que diz respeito à ascensão social. Os dois têm tudo para ter um bom diálogo. Embora Obama seja visto como intelectual, Lula já tem seis anos de governo à frente de um país como o Brasil, o que lhe dá grande conhecimento sobre questões internacionais. Acho que Obama pode aprender mais com Lula do que o inverso.