27/04/2005 - 7:00
Uma explosão! Na boca. Literalmente uma explosão. Aquele ?leite elétrico? ? era esse o nome ?, à base de pimenta chinesa, provocava um estouro de sabores e aromas, um choque de sensações. Era o primeiro impacto! Seguia-se um festival de surpresas: um balão de encher (do tipo festa infantil mesmo) fura e lança o perfume das laranjas vermelhas da região. Uma pipoca em forma de espuma, um frozen de porco, balas de pistache, caramelos de azeite, farofa de foie gras, pasta de ervilha como gema derretendo na boca, nhoque de batata e menta. Desista de entender a reação. Mesmo os comensais lançam olhos espantados diante de toda aquela experiência. Sim, dá para colocar nesse molde: um laboratório gastronômico pleno. Afinal, não se pode dizer que tudo que acontece ali se passa como numa simples refeição. É a reviravolta das texturas, gostos e formatos na comida. A manipulação de ingredientes levada ao extremo. A caipirinha típica brasileira também entra no menu. Claro, sem o composto original ? gelo, açúcar, limão e pinga. Definitivamente não é mais uma mera caipirinha. Está lá na essência do seu sabor, extraída em nitrogênio puro, produzida em vapor, misturada com aniz e estragão, um frozen de caipirinha. É a prova da transformação constante, quase darwiniana, também na ponta da língua. Triturada, destruída, amassada e reconstruída, servida em lâminas finas como seda ou espuma, a cozinha surrealista de Ferran Adrià vem colocando de ponta-cabeça os conceitos mundiais da boa mesa.
O mago catalão, tratado como divindade entre seus pares, pilota decerto um fogão revolucionário. O restaurante El Bulli, de sua propriedade, situado na cabeceira de uma montanha, ao qual se chega por uma estrada sinuosa que serpenteia toda a Riviera de Roses, na região da Costa Brava, sul da Espanha, a 160 quilômetros de Barcelona, merece (mais que a média) a alcunha de meca do consumo inventivo. Ganhou as cobiçadas três estrelas do Guia Michelin (o máximo de pontuação). Abre suas portas apenas seis meses por ano, somente no jantar, e impõe a seus clientes um serviço de 33 pratos, numa maratona de degustação que consome nunca menos de cinco horas. Imagine cinco horas à mesa, prato após prato, reeducando o seu paladar. Não é um cursinho, é o dia-a-dia dos convescotes do El Bulli. Várias caras e bocas depois, cada um que segue até lá deve estar disposto a pagar perto de 140 euros para traçar as iguarias. Apreciadores, mesmo assim, são muitos. Alegam os promotores do restaurante que a lista de espera por uma reserva já ultrapassa os quatro anos. Exagero ou não, o fato é que o El Bulli virou orgulho nacional entre os espanhóis, emblema da imagem de criatividade que tentam passar ao mundo para atrair novos seguidores de sua indústria de alimentos e bebidas. E vem dando certo. Adrià, o mentor de toda essa orgia das panelas, foi guindado pela revista Time à condição de uma das 100 pessoas mais influentes do planeta, maior gênio culinário em atividade. Com suas especiarias, vem dando olé até nos franceses, tradicionais referências nesse campo do conhecimento.
No comando de uma equipe de 60 profissionais ? entre os quais encontram-se até químicos para ajudarem nas descobertas ? Adrià estabelece as próprias regras: usa ferramentas inéditas e fermentações desconhecidas da maioria dos chefs mortais. Recorre à emulsificação de ingredientes, à precipitação das proteínas e ao que convencionou chamar de ?esferificação? dos pratos ? a maioria deles vem na forma esférica ?, servidos em colheres, copos ou, simplesmente, em sacos plásticos. É quase um parque de diversões para os gourmets e, devido às suas magias, Adrià pode ser percebido como um David Copperfield do bom garfo. Ele prefere o paralelo com o seu conterrâneo da arte, Pablo Picasso. No laboratório-restaurante, diz, não ganha dinheiro. Seus lucros estendem-se por outras atividades paralelas. Publicou quatro livros de receitas que viraram best sellers, administra à distância a cozinha de 130 hotéis, mantém um catering de refeições rápidas, uma lanchonete de fast- food (que recebeu a alcunha de fast good) e, principalmente, realiza a pedido ? mediante pagamento de alguns milhares de euros ? memoráveis banquetes para uma platéia seleta, quando contratado por clientes como Armani, Cartier, MacLaren e outros.
Não há dúvida, Adrià é o ponto alto de uma onda culinária espanhola que quer conquistar novos territórios ? e o Brasil está entre os alvos. Numa ofensiva montada pelo governo, através do seu Instituto de Comércio Exterior (Icex), os espanhóis querem abrir mercados para seus queijos, vinhos, presuntos e azeites, tidos entre os melhores do mundo. Para os queijos. por exemplo, criaram o slogan ?O País dos 100 queijos?. Também nessa bandeja querem desbancar os franceses. Só no mercado brasileiro, 15 empresas espanholas de queijos já solicitaram registro de entrada para iniciar as exportações. O mesmo acontece com os presuntos ? que procuram distribuidores aqui. Os azeites ? atividade na qual controlam mais de 50% da produção global ? estão chegando gradualmente ao Brasil com produtores como o Grupo Pons, que fechou parceria com a rede de supermercados carioca Zona Sul. Nos vinhos, o fenômeno se repete. Alguns, como os da região do Priorato ? uma terra seca e rochosa que aceita o cultivo de várias cepas, plantadas no cascalho ?, cotados entre os melhores do mundo, já são encontrados nas importadoras do eixo São Paulo-Rio. Grandes bodegas espanholas, como a Miguel Torres, montaram em suas instalações verdadeiras Disneylândia do vinho ? com trenzinhos, salas aromatizadas e show de efeitos especiais ? para conquistar admiradores e ampliar vendas. Outras, como a Codorníu, acenam com uma bebida diferenciada, as cavas, vinhos espumantes que seguem o mesmo processo dos champanhes, mas têm sua variedade marcada pelo clima e solo. Codorníu alega ter mais de 40 quilômetros de adegas subterrâneas. Toda essa potencialidade encontra respaldo e uso nas mesas do chef Adrià. Nos últimos tempos, à frente dessa ofensiva gastronômica espanhola, Adrià temperou seu currículo com a atribuição de embaixador dos prazeres da mesa. Os apreciadores agradecem.
?Sou o Picasso?
O chef Ferran Adrià se compara ao mestre da pintura e diz que copiar é desonesto. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na cozinha do seu restaurante, em pleno corre-corre de pratos:
CRIATIVIDADE
?Todos nós nos inspiramos em alguém, temos influências. Já copiar é não ser honesto. Creio que é genial inspirar os outros. Temos muitos jovens, até brasileiros, que estão nesse movimento da cozinha espanhola.?
RITMO
?Aqui é uma loucura. Estamos mudando tudo, o ano todo. A velocidade é grande. Passamos seis meses estudando novos pratos e outros seis com o restaurante aberto. Fazemos um rodízio de pelo menos 20 novos profissionais por ano, para haver uma renovação. Trabalhamos 12 horas seguidas para atender a 50 clientes por dia.?
AMBIÇÃO
?Não quero ganhar dinheiro aqui. Tenho outros negócios. Minha cozinha é meu laboratório. Somos capazes de ir cada vez mais adiante e isso nos faz trabalhar de bem com a vida.?
MESTRES
?Aqui estamos na vanguarda. A nossa cozinha tem a inovação, dá à Espanha a imagem de um país moderno. Picasso fazia modernidade com a pintura, nós a fazemos ao nosso jeito. Os grandes cozinheiros são como artistas dos pratos.?
FUTURO
?Daqui a dez anos me vejo no Brasil, tomando sol numa praia. Em três anos quero parar um pouco, passear pelo Brasil, por Nova York, visitar tudo, sair da correria. Aqui vivemos só para a cozinha, não temos tempo para mulher, filhos, só para o El Bulli.?