10/03/2019 - 8:37
Enquanto via os olhos azuis da rolinha-do-planalto, os de Silvia Linhares se enchiam de lágrimas. De tão raro, o passarinho não aparecia na natureza havia 75 anos. Foram dias de planejamento e uma viagem longa até que a funcionária pública aposentada pudesse pousar a câmera diante do bicho. O registro é guardado com carinho entre as fotografias que já fez de passarinhos por aí. E não são poucas. Ela ostenta o pódio entre os que mais avistaram aves – uma paixão que compartilha com milhares de pessoas.
Estimulados por eventos e pelas redes sociais, os observadores de pássaros ganham espaço no País. São pessoas de todas as idades, que dedicam parte do tempo a avistar aves e fotografá-las. A “caça” não admite gaiola nem bodoque. Pelo contrário. Os registros, sem machucar os animais, são publicados em sites e aplicativos e ajudam até cientistas e gestores ambientais a monitorar as espécies.
“É muito mágico”, resume Silvia, que também tira um tempo para contemplar as árvores e o pôr do sol. “Quem mora em São Paulo precisa de um ponto de apoio e tranquilidade. É uma terapia.” Ela faz viagens só para ver passarinhos – já foi a Mato Grosso do Sul, Ceará e Espírito Santo e até para fora do País. Mesmo em casa, quando faz ginástica, é pensando nas trilhas que terá de enfrentar atrás das aves.
Apesar da pouca idade, o estudante Rafael Scalese, de 17 anos, é outro que coleciona as fotos de pássaros, como um álbum de figurinhas. Tudo começou quando, aos 11, viu na casa dos avós, no interior paulista, um deles pendurado em um fio, cantando. “Fui pesquisar e descobri que existiam pessoas que dedicavam a vida inteiramente ou parcialmente a esse esporte.”
O início foi modesto. “Comecei a ver os que tinham na varanda de casa, no caminho para a escola”, conta o jovem que mora em Santo André, na Grande São Paulo. Hoje, ele também faz viagens para observar, mas garante que é possível avistar muitas espécies em parques e praças, sem deixar a cidade grande. “Existe um senso comum de que tudo o que voa é pombo ou pardal. As pessoas acabam não prestando atenção.”
Nos passeios em busca de passarinhos, conta, todo detalhe ajuda: um barulhinho entre as árvores, pegadas no chão. É preciso conhecer o comportamento da ave, ter um pouco de paciência e uma dose de sorte. Também vale a pena desligar o celular para se concentrar. “Me ajudou muito a ser uma pessoa mais calma, menos ansiosa.” As fotos vão parar em um site, o WikiAves, que funciona como uma enciclopédia colaborativa dos pássaros.
Na plataforma, Rafael, Silvia e uma legião de observadores ajudam os colegas iniciantes a identificarem as espécies que fotografam. Analista de sistemas e observador de aves nas horas vagas, o idealizador do site, Reinaldo Guedes, diz que quase não sobra mais tempo para “passarinhar”. Tudo por culpa do volume de informações que tem de gerir no WikiAves. Já são 2,7 milhões de fotos depositadas na enciclopédia virtual – todos os dias, mil novas imagens chegam à plataforma.
Ciência cidadã
Como os registros identificam o local e a data em que a ave foi avistada, tornam-se dados preciosos para cientistas que monitoram as espécies. “O site fornece informações para pesquisadores. Alguns entram e usam em artigos científicos. Faço uma coleção dos que citam o WikiAves”, conta Guedes.
“Para entender as migrações, esses registros são valiosos, desde que estejam corretos, idôneos”, explica Carla Fontana, presidente da Sociedade Brasileira de Ornitologia. Foi depois de um vídeo feito por moradores de Curaçá, no interior da Bahia, que especialistas confirmaram, em 2016, o reaparecimento da ararinha-azul na natureza, após 15 anos sem ser vista.
Coordenador de Planejamento da Visitação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Paulo Faria diz que a atividade também ajuda na preservação das espécies em unidades de conservação. “São muito ricas as informações dos observadores, nos dão condições de monitorar algumas espécies, sobretudo as mais raras e ameaçadas. Conseguimos ter uma noção mais clara sobre as populações.”
Segundo Faria, cada lugar tem sua vocação. “Na Amazônia, o Parque Nacional do Viruá, em Roraima, já bateu o recorde de espécies avistadas no mesmo dia. Já no extremo sul, no Parque Nacional da Lagoa do Peixe (RS), há fenômenos anuais de migração de aves. Em áreas urbanas, é comum grupos cotidianos de observadores que não são turistas, mas moradores”, exemplifica.
Em outubro, o ICMBio publicou uma instrução que regulamenta a observação de aves dentro de áreas de conservação. A regra veio após o órgão identificar o crescimento da atividade e partiu de demandas dos próprios observadores. O texto permite o uso de sons que reproduzem ou imitam a vocalização dos pássaros, prática usada para atrair espécies. Perto de ninhos, no entanto, essa técnica é proibida.
Butantã oferece passeios coletivos
Quem quer treinar o olhar para ver os passarinhos encontra oportunidade em passeios coletivos. Na capital paulista, o mais conhecido ocorre um sábado por mês no Instituto Butantã, zona oeste. O Vem Passarinhar, uma caminhada para observação de aves, começa cedinho. Um guia conduz o grupo – desde crianças pequenas até idosos – com cantos gravados de aves, para atrair as espécies.
À medida que elas vão surgindo, são dadas explicações sobre o pássaro e seus hábitos. “Depois, temos um lanche coletivo e uma conversa com alguém que faça um trabalho legal na área de conservação”, diz Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Museu Biológico do Butantã. “Começamos a formar um exército de pessoas que se encantam pela natureza e podem se tornar preocupadas com a conservação.”
Há atividades de observação de aves em outros parques estaduais de São Paulo quatro vezes por ano. Passeios do tipo também são realizados no Rio e em Minas Gerais. Segundo Erika, os iniciantes se surpreendem com o que veem. “Já teve gente chorando, dizendo que nunca imaginaram que tivesse um bicho tão bonito aqui.”
Anualmente, um evento reúne os observadores para troca de informações. O Avistar Brasil é realizado há 12 anos e já tem versões estaduais. Segundo Guto Carvalho, coordenador do evento nacional, de lá para cá a atividade tem crescido no Brasil.
“Na época, a gente estimava que tinha cerca de mil participantes e hoje, só registrados (em plataformas de observação), temos 30 mil. Temos observado um crescimento sistemático”, diz ele, que já fez dois censos da atividade nas redes sociais.
Para Carvalho, a prática é favorecida pelas tecnologias. “Antigamente era muito complexa a conexão com as pessoas, acontecia somente pelos clubes de observação, que eram pequenos e relativamente isolados. Com a internet, as pessoas começaram a se conectar com as outras e com uma geração de ornitólogos, cientistas que trabalham com aves.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.