O Brasil tem 446 usinas sucroalcooleiras instaladas, cuja estimativa de produção é de 35,4 bilhões de litros de etanol e 680 milhões de toneladas de açúcar na safra 2023/2024, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Os números são expressivos, mas escondem uma realidade pouco divulgada por entidades do setor na hora de expor os dados como reflexo do sucesso agroindustrial brasileiro: 24% das usinas ou estão em processo de recuperação judicial ou falidas. Parte delas com processos que se arrastam por anos no Judiciário.

São 107 usinas nesta situação de recuperação ou falência, conforme levantamento da RPA Consultoria, especializada em agroindústria canavieira. São 79 usinas em recuperação judicial, sendo que 32 estão com as atividades paralisadas. Outras 28 estão com falência decretada, a maioria (25) sem qualquer atividade. O diretor da RPA, Ricardo Soares de Arruda Pinto, avalia que os números refletem uma forte onda que se abateu no setor sucroalcooleiro a partir de 2011, após a crise financeira de 2008.

Segundo ele, o cenário de preços elevados para o etanol, a oferta de crédito com juros baixos e a promoção pelo governo do biocombustível como alternativa à gasolina fez o setor investir em novas usinas e atrair investimentos internacionais. Na contramão veio a crise do subprime, em 2008, minando o movimento.

Pesou contra, ainda, efeitos de secas fortes sobre a safra de cana nos anos seguintes e a política de preços artificialmente controlados pelo governo Dilma Rousseff (2011-2016), com a Petrobras segurando o repasse de custos internacionais para frear a inflação. “A conjuntura de preços de açúcar e álcool baixos, alavancagem e asfixia de crédito gerou esse crescimento muito forte de pedidos de recuperação judicial. Muitos grupos tiveram que pedir falência, muitos venderam suas unidades. Alguns poucos, recentemente, começaram a sair das RJ, mas ainda é uma minoria”, afirma Arruda Pinto.

Processos longos

O jurista Leandro Chiarottino, sócio-fundador do Chiarottino e Nicoletti Advogados, atua com recuperação judicial e processos de falência desde 1996. Especializado em agronegócio, ele sugere que o setor sucroalcooleiro vive uma “anomalia” marcada pelo desgaste dos credores em processo com prazos excessivos de duração. O advogado cita o caso da Baldin Bioenergia, de Pirassununga (SP), que se arrasta desde 2012, quando pediu proteção contra credores de uma dívida estimada à época em R$ 500 milhões. O plano de recuperação foi aprovado em 2014 e segue havendo disputa entre as famílias Baldin e Bryan Correa, uma das principais credoras, para a qual Chiarottino advoga.

Outros processos se estendem por duas décadas pelo país afora, violando o princípio da duração razoável do processo, adotada pelo Brasil. “Existe uma deformação realmente muito grande desse princípio do Direito”, considera Chiarottino.

O caso mais singular é o da Usina Laginha, de União dos Palmares (AL), cujo dono era o falecido empresário João Lyra, que já foi o deputado federal mais rico do país. A empresa, que havia se submetido a recuperação judicial em 2008 e entrou em processo de falência em 2021 após a morte de Lyra, em meio a uma briga entre as herdeiras, as irmãs Thereza Collor de Mello e Maria de Lourdes Lyra. O processo segue na justiça sem desfecho. A dívida com cerca de 7,8 mil credores soma R$ 4 bilhões. A briga foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF).

A União detém R$ 2,3 bilhões da dívida em impostos, mas ofereceu desconto de 62% por meio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), reduzindo o pagamento para R$ 955 milhões. Em decisão recente, o ministro Nunes Marques (STF) remarcou a assembleia-geral de credores para o início de dezembro, após acordo PGFN, que manteve o desconto generoso na dívida tributária da Laginha.

São Paulo, estado com maior participação no setor sucroalcooleiro, acumula casos de RJs que se arrastam por anos. É o caso do processo de falência da Usina Floralco, pertencente às massas falidas das empresas GAM Empreendimentos e Participações S.A. e Flórida Paulista Açúcar e Etanol S.A.. O processo segue sem desfecho na comarca de Flórida Paulista (SP) desde 2010.

Entre outros casos importantes estão a Usina Albertina (Sertãozinho-SP), iniciado em 2008, e da Usina São Fernando (Dourados-MS), desde 2013. Ambas as empresas tiveram os processos de falência decretados pela Justiça, entre outros motivos, pela dificuldade imposta pelo tempo extensivo na recuperação judicial. Entraram para uma estatística comum no país, onde 106 das 446 usinas existentes estão com atividades paradas. Entre as 47 em recuperação judicial, 32 estão paralisadas, e das 28 falidas, 25 não operam mais, conforme os dados da RPA.

Chiarottino analisa o encerramento de atividades como decorrente da demora na recuperação, o que resulta no travamento da capacidade de manter os negócios financeiramente por dificuldades para buscar crédito. “O capital de giro vai se deteriorando a partir do momento do deferimento do pedido [de recuperação] e, com a protelação do procedimento de recuperação judicial, há uma maior probabilidade da convolação em falência”, explica.

José Roberto Camasmie Assad, sócio de Freitas e Assad Advogados, pesquisador e mestre em Direito pela FGV-SP, entende que o procedimento entre o pedido de recuperação e sua efetivação é lento. Ele explica que as recuperações judiciais envolvem um número grande de credores, exigindo demoradas análises de documentação e de perícia prévia até o aceite efetivo do Judiciário. “Depois a gente tem uma série enorme de recursos do credor, mas também da parte devedora. Isso acaba empurrando o processo para um tempo mais comprido”, contextualiza.

A celeridade dos processos é alvo do projeto de lei 3/2024, em tramitação no Senado, com o objetivo de reduzir o tempo médio dos casos para 5 anos. Assad se mostra cético em relação ao projeto se não houver mudança no comportamento de agentes do mercado e do Judiciário, com a magistratura mais rigorosa ao cumprimento de prazos e ao excesso de recursos. “O judiciário e os credores acabam tolerando [postergações], e o devedor se aproveita de alguma maneira disso”, avalia. “Não é algo simples administrar um processo concursal, mas eu acho que precisa ter uma atitude um pouco mais enérgica do Judiciário em relação ao cumprimento de prazos”, sugere.

Personalidade jurídica

Em muitos dos casos de RJ em curso, é utilizado como instrumento legal o chamado incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), tema que vem sendo debatido no judiciário e escritórios de advocacia por sua pertinência e uso excessivo por juízes à frente desses processos. Na prática, o IDPJ permite que os efeitos da falência sejam estendidos a terceiros, envolvendo sócios, parentes e empresas que têm ou tiveram relação de negócios com a companhia falida.

Os processos, que podem ser conduzidos sob sigilo a partir da investigação de escritórios de advocacia especializados contratados pelo Administrador Judicial. O instrumento permite o arresto de bens de terceiros sem necessariamente haver apresentação prévia de defesa. Entre os questionamentos dessa prática está a não exigência de perícia, impedindo ao juiz uma avaliação técnica se houve ou não abuso sobre os investigados.

De acordo com Chiarottino, o IDPJ é legítimo, mas “não se pode [generalizar] essa prática, porque aí realmente há necessidade de prova de confusão patrimonial prévia”. O jurista enfatiza que o uso excessivo da desconsideração acaba sendo um desincentivo ao investimento produtivo. “Todo empresário sabe os riscos que assume [ao investir] e parte da premissa de que a responsabilidade dos sócios e acionistas de empresas não pode ser ilimitada.”

Assad não vê como “patologia” generalizada eventuais desvios de condutas da magistratura em relação aos processos no país. Mas cobra modernização na atuação dos entes envolvidos tanto do lado do Judiciário quanto do mercado para dar conta de uma crescente onda de pedidos de recuperação judicial verificada no agronegócio como um todo.

A Serasa Experian registrou aumento de 40,7% no número de pedidos no terceiro trimestre deste ano entre produtores rurais e empresas do agronegócio. “A gente vê uma propaganda dos benefícios da recuperação judicial, como salvação dos problemas. Mas tem o day after. O mercado vai continuar dando crédito como concedia antes?”, questiona.