05/12/2012 - 21:00
Quando finalmente conseguiu um cargo de diretor na Agência Nacional de Águas (ANA), em 2010, depois de duas rejeições no plenário, o advogado baiano Paulo Rodrigues Vieira criou um problema para os colegas da diretoria: onde colocar uma pessoa que não entendia nada da complexa tarefa de regular o uso da água dos rios da União? Os demais diretores, todos com formação técnica, não tinham poder para vetar a indicação. Mas sabiam que havia algo errado com o novo integrante do colegiado, que não tinha histórico de atuação em área tão específica. Para mantê-lo isolado, fizeram o caminho oposto: entregaram a Paulo Vieira a área de hidrologia, a mais técnica de todas, onde ele teria pouco espaço para exercer a influência política que o levou ao cargo.
Os irmãos cara de pau: investigação da PF revela que Rubens Vieira (à esq.) e seu irmão Paulo
usavam os cargos de diretoria na Agência Nacional de Aviação Civil e na Agência Nacional
de Águas para favorecer empresas
Vieira, aliás, não escondia que tinha “padrinhos”. Ao contrário. Sempre que podia, o diretor da ANA, afastado na semana passada do cargo, e preso sob a acusação de corrupção ativa, fazia questão de mencionar, nas conversas com os colegas, que era amigo do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, e de Rosemary Nóvoa de Noronha, que na segunda-feira 26 foi exonerada do cargo de chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo. Rosemary foi apontada pela Polícia Federal, na Operação Porto Seguro, deflagrada na sexta-feira 23, como uma das peças-chaves de uma quadrilha que buscava influenciar decisões de órgãos públicos em favor de empresas ou para benefícios particulares.
O grupo em questão era integrado também por Rubens Carlos Vieira, que ocupava, até a semana passada, o cargo de diretor de infraestrutura da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Irmão de Paulo Vieira, Rubens também foi afastado do cargo e preso na sexta-feira 23. Foram exonerados após as conclusões das investigações, que começaram em março do ano passado, com as informações reveladas à polícia pelo auditor do Tribunal de Contas da União (TCU), Cyonil Borges, de que teria sido cooptado por Paulo Vieira, em 2009, para emitir um parecer favorável à empresa Tecondi, companhia de operações portuárias, que atua no Porto de Santos.
Em maus lençóis: Rosemary Nóvoa de Noronha foi exonerada do gabinete da Presidência
da República em São Paulo por uso indevido do cargo para benefícios particulares
Apontado como o chefe do esquema, Paulo, segundo a PF, ofereceu R$ 300 mil a Borges, sendo que R$ 100 mil foram pagos antes que o servidor do TCU fizesse a denúncia. Na época, Vieira era ouvidor-geral de outro órgão regulador, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). O parecer negociado garantiria à empresa Tecondi a operação em áreas que ela vinha reclamando desde 1998, quando ganhou uma licitação da Codesp, empresa que administra o Porto de Santos, para operar um terminal portuário numa área de 170 mil metros quadrados, no terminal do litoral paulista. A Prefeitura de Santos, porém, vetou a utilização dessa área que estaria sendo revitalizada.
Deu em troca outra área, de 132 mil metros quadrados, que não atenderia à necessidade logística da Tecondi. No ano seguinte, Vieira se transferiu para a ANA, depois de uma manobra política que contou com o lobby de Rosemary, usando o nome do ex-presidente Lula. Agora, sua atuação no órgão está sendo investigada por um sindicância interna. Também perderam o cargo, na semana passada, o ouvidor da Antaq, Jailson Santos Soares, o procurador-geral, Glauco Moreira, e o chefe de gabinete, Ênio Soares Dias, todos acusados de participar do esquema de tráfico de influência.
O advogado-geral-adjunto da Advocacia-Geral da União (AGU), José Weber Alves, número 2 na autarquia, foi acusado de redigir parecer para facilitar a aprovação do projeto de um complexo portuário na Ilha dos Bagres, no litoral paulista, de interesse do ex-senador Gilberto Miranda, pelo Amazonas, avaliado em R$ 2 bilhões. As três agências reguladoras e a AGU, além de afastarem os envolvidos, determinaram um pente-fino nas decisões assinadas por eles. “Estamos analisando cada linha com lupa”, diz o corregedor-geral da AGU, Ademar Passos Veiga. Em duas semanas, o órgão vai anunciar um conjunto de regras para disciplinar a atuação dos advogados da União.
Andreu, da ANA: “Indicados precisam ser sabatinados por técnicos
para evitar politização”
“São medidas para lidar com a fragilidade institucional, que leva à contaminação de processos”, disse na quinta-feira 29 o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. Na Anac, uma equipe está analisando todos os documentos que passaram pelas mãos de Rubens Vieira. “A conduta é do servidor, não da agência”, afirma o presidente da Anac, Marcelo Guaranys. A existência de uma “quadrilha” dentro das agências abre um debate importante sobre o papel que elas desempenham na economia. Afinal, se existem para fiscalizar e garantir o bom funcionamento do mercado, como são fiscalizadas? Criadas em 1996, as autarquias tinham a incumbência de zelar pelos setores que haviam sido privatizados, como é o caso da telefonia, energia e transportes.
Na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, eram vistas como independentes do governo. Independentes demais, na visão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, ao assumir, em 2003, reduziu o seu poder e abriu brechas para acomodar aliados partidários. Com a presidenta Dilma, essa dinâmica começou a mudar. Dilma determinou que as diretorias das agências sejam preenchidas por técnicos de cada área, preferindo manter o cargo, a ceder a pressões políticas. Evitar o loteamento político dos cargos está em grande parte nas mãos da Presidência da República, responsável pela indicação dos diretores ao Senado. Mas não só. Depois da indicação do presidente, o candidato precisa ser sabatinado na comissão temática correspondente e aprovado em plenário.
Corrupção ativa: decisão judicial autoriza a quebra de sigilo dos acusados de tráfico de influência
pela Operação Porto Seguro, da Polícia Federal
O problema é que a sabatina não é levada a sério como deveria, uma vez que essas autarquias influenciam diretamente a atuação de negócios bilionários. “Sabatina não pode ser um processo formal, tem de ser rigorosa”, diz o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). Da maneira que funciona hoje, nem sempre as aprovações ou rejeições são baseadas no mérito. “O voto no plenário ainda permite uma politização”, diz Vicente Andreu, diretor-presidente da ANA. “Os indicados precisam ser sabatinados por uma comissão técnica, com integrantes do governo e da sociedade, que dariam uma nota de avaliação pelos seus conhecimentos.” Para o advogado Carlos Ari Sundfeld, um dos formuladores do modelo de atuação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o sistema atual ainda dá margem para a atuação de pessoas despreparadas que acabam exercendo o papel de “predadores da administração pública”.
“Precisamos reduzir o número de cargos de confiança”, diz Sundfeld. “O sistema de indicação pelo presidente da República não tem funcionado bem.” Ele ressalta, porém, que o País está avançando nessa matéria, e não retrocendo, apesar dos atuais escândalos de tráfico de influência. “Temos mais órgãos de controle, e o fortalecimento da PF.” A preservação do caráter técnico das agências não serve apenas à moralização do Estado. É também importante para garantir investimentos nos setores regulados. “É uma questão de segurança jurídica, fundamental para os investimentos de longo prazo”, diz Paulo Coutinho, diretor do Centro de Estudos em Regulação de Mercados da Universidade de Brasília (UnB).
Na avaliação de Paulo Mendes, presidente da Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras (Aner), empresas e sociedade precisam ter confiança de que os servidores são profissionais especializados e capazes de controlar e fiscalizar práticas de mercado. “Se uma agência favorece apenas uma empresa ou pessoa, perde credibilidade e afasta os investidores que querem segurança e regras que garantam competitividade ao seu negócio”, diz Mendes. Por outro lado, é importante lembrar que a culpa num ato de corrupção não é apenas do funcionário público. Onde há um corrupto, existe um corruptor. “É preciso uma maior transparência para reduzir os riscos e o espaço para vender as regras”, defende Sundfeld. As medidas que serão anunciadas pela AGU buscam justamente isso.
Colaboraram: Cristiano Zaia e Guilherme Queiroz