Fernando Henrique esteve no apartamento da Alameda Jaú em maio de 1994. Ali, o então ministro da Fazenda ouviu que era preciso tomar cuidado com a sobreva- lorização do real, âncora do plano de estabilização. ?Eu já fiz um congelamento e sei que essas coisas grudam?, disse o anfitrião, professor de economia e calejado protagonista de um plano antiinflacionário que quase deu certo, o Cruzado, de 1986. FHC respondeu com um bravata: ?Pode deixar que dos economistas eu cuido?. Não cuidou. O real manteve-se por cinco anos lá em cima em relação ao dólar, fazendo com que a competitividade brasileira fosse lá pra baixo em relação ao resto do mundo. Agora, no ocaso lastimoso do governo FHC, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo está voltando a receber visitas importantes. Na sua sala espartana, decorada com mi-lhares de livros, já estiveram Ciro Gomes e Itamar Franco, assim como inúmeros assessores de Lula. Subitamente e a contragosto, o professor da Unicamp e PMDB de carteirinha tornou-se o oráculo das oposições.

?Essas coisas não devem ser personalizadas?, disse ele a DINHEIRO, na semana passada. ?Faço parte de um grupo de pessoas que têm um diagnóstico comum sobre a economia brasileira.? Nesse grupo, ele esclarece, estão personalidades tão diferentes quanto o ex-ministro Delfim Netto e a tonitruante economista Maria da Conceição Tavares, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de vários outros nomes respeitáveis de dentro e de fora da academia. O que Belluzzo não diz, por modéstia, é que ele, mais que os demais, é uma unanimidade: pela clareza das idéias, pela largueza da cultura e da experiência econômica e, sobretudo, pela capacidade de manter a coerência por três décadas (do combate à ditadura ao embate contra o neoliberalismo), sem confinar-se a qualquer gueto ideológico ou intelectual. Ele fala com todos e todos o ouvem. Ou quase. Até pouco tempo atrás, o que Belluzzo e outros críticos diziam sobre o modelo econômico Malan-FHC caía no vazio. Agora, talvez por efeito do apagão, talvez por efeito da nova crise cambial, talvez pela derrocada ortodoxa na Argentina, ligou-se um holofote sobre as rachaduras do modelo liberal. ?Os fatos se tornaram incontestáveis?, diz o professor. ?O debate, que antes estava interditado, se abriu.?

Com a discussão de vento em popa, animada pela proximidade da eleição, Belluzzo tem sido chamado diariamente a repetir seu diagnóstico. ?Criamos uma nebulosa inorgânica?, afirma. Em linguagem menos astronômica, isso quer dizer que o modelo econômico dos anos 60 e 70, criado pelos militares, foi inteiramente desmontado nos anos 90. O grande Estado planejador, ao redor do qual gravitava o projeto do nacional-desenvolvimentismo, foi gradualmente satanizado, depauperado e esvaziado de suas funções. Em seu lugar, a ideologia da era FHC propôs a auto-regulação dos mercados e a disciplina das instituições internacionais. Mas disso resultou um projeto nacional mesquinho, fragmentado, que não acomoda o País. É a nebulosa de Belluzzo. Esse modelo não conseguiu repetir o crescimento da ditadura nem modernizar a produção, para tornar o Brasil mais competitivo. Ao contrário, o Brasil de Malan e FHC é um país fragilizado, que vive de crise em crise à mercê das instituições internacionais. Não tem autonomia nem para planejar sua infra-estrutura. Está, junto com a Argentina, no barco dos que fizeram a lição de casa liberal e que navegam na direção contrária à segurança econômica, conquistada por países como Coréia, China e até mesmo a Índia. ?Pagamos um preço exagerado pela estabilidade?, diz Belluzzo. ?Com exceção da Argentina, todos cresceram mais e tiveram déficits menores,
com a mesma inflação.?

Os candidatos que entram na sala da Alameda Jaú, porém, não querem discutir apenas o que já passou. Precisam entender o que pode acontecer no futuro. Coerente com o que tem dito nos últimos anos, Belluzzo avisa: ?A vida vai ser dura?. Ele diz que nos próximos anos será preciso paciência e perseverança para desatar o nó central da economia, o financiamento externo. Ele defende que o País tem de produzir superávits comerciais e reduzir sua dependência, com apoio de políticas públicas que hoje não existem. ?Talvez se tenha até que fazer uma recessão para reduzir as importações?, pondera. Em desafio à onda liberal, sustenta que ?é preciso reverter a abertura financeira?, preparando-se para o refluxo do capital internacional e para o que ele antecipa como um ?aperto de crédito?. E para quem acha que chegou a hora da redenção pelo gasto social, o aviso: ?Vamos ter de manter o equilíbrio fiscal por um longo período?. O mesmo vale para os saudosistas dos anos 70. ?Não se vai voltar ao nacional-desenvolvimentismo?, diz o professor. ?Ele era fruto de outra época no capitalismo mundial.? Para Belluzzo, a tarefa principal do próximo governo será organizar o rumo da mudança, e para isso, diz ele, os economistas são menos necessários que os políticos: ?Não precisamos de tecno- cratas. Quem assumir terá de negociar com os descontentes?. E que fique claro que ele mesmo não é candidato à função. Aos 58 anos, o professor quer mais tempo para ver os jogos do Palmeiras, ler com calma as dezenas de papers que recebe por semana e, claro, curtir os fi- lhos, ainda pequenos. ?Já estive oito anos no governo e não tenho a menor vontade de voltar?, informa. Quem discordar, toque a campainha na Alameda Jaú.