25/09/2025 - 15:46
Ataque inédito de Israel no Catar, no Golfo Pérsico, causou rupturas nas políticas de defesa árabes, com mais apelos à cooperação regional.Não havia muito o que o Catar pudesse fazer em relação aos mísseis balísticos que Israel disparou em Doha no dia 9 de setembro, quando cerca de 10 caças israelenses sobrevoaram o Mar Vermelho, sem cruzarem o espaço aéreo de nenhum outro país, antes de colocarem a ação em prática. Um ataque considerado “além do horizonte”.
Mísseis balísticos viajam até a atmosfera ou até mesmo ao espaço sideral antes de voltarem à Terra. O alvo dos mísseis israelenses eram membros do grupo Hamas, reunidos para discutir um possível cessar-fogo em Gaza, em um bairro nobre da capital Doha. Seis pessoas foram mortas, embora, aparentemente, não fossem os alvos de Israel.
Como os mísseis surgiram inesperadamente, o Catar pouco pôde fazer para se defender. A verdade é que uma das salvaguardas mais importantes do país contra Israel não tem ligação com sofisticados sistemas de defesa antiaéreos. O maior aliado israelense, os EUA, têm sua maior base regional no país e recentemente concedeu ao Catar o status de “grande aliado não membro da Otan”.
Mas nem isso parece ter sido suficiente para impedir Israel de realizar seu primeiro ataque conhecido a um Estado árabe do Golfo, uma ação sobre a qual os EUA provavelmente teriam que saber.
EUA são vistos como pouco confiáveis
“O ataque israelense abala as premissas do Golfo sobre suas relações com os EUA, e esses países se aproximarão ainda mais. Essas monarquias petrolíferas são muito semelhantes… Um ataque tão direto à sua soberania e segurança é um anátema para todas elas”, escreveu Kristin Diwan, pesquisadora do Instituto dos Estados Árabes do Golfo, em Washington, logo após o ataque.
Como resultado, “os governantes dos países do Golfo buscam maior autonomia estratégica e estão cada vez mais determinados a se proteger contra os riscos de depender dos EUA”, reiterou Sanam Vakil, diretora do programa do Oriente Médio e Norte da África da Chatham House, em um artigo publicado neste mês no jornal britânico The Guardian.
Devido a tudo isso, nas últimas semanas, tem-se falado cada vez mais sobre a formação de uma “Otan islâmica”, uma aliança de defesa entre países islâmicos e árabes que poderia funcionar de maneira semelhante à Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Em uma cúpula de emergência organizada na semana passada pela Liga Árabe e pela Organização da Cooperação Islâmica, autoridades egípcias sugeriram a criação de uma força-tarefa conjunta para as nações árabes, semelhante à Otan.
Durante um discurso, o primeiro-ministro iraquiano, Mohammed Shia al-Sudani, também pediu uma abordagem coletiva para a segurança regional. E os seis membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – disseram que ativariam uma cláusula de um acordo conjunto de defesa, assinado pela primeira vez em 2000, que dizia que um ataque a um Estado-membro era um ataque a todos – uma formulação semelhante ao artigo 5.º da Otan.
Após a cúpula emergencial, os ministros da Defesa dos Estados do Golfo realizaram outra reunião em Doha e concordaram em aprimorar o compartilhamento de informações e os relatórios sobre a situação aérea, bem como em acelerar a criação de um novo sistema regional de alerta de mísseis balísticos. Também foram anunciados planos para exercícios militares conjuntos.
Na mesma semana, a Arábia Saudita anunciou um “acordo estratégico de defesa mútua” com o Paquistão, declarando que “qualquer agressão contra um dos dois será considerada uma agressão contra ambos”.
Início da “Otan islâmica”?
De acordo com especialistas entrevistados pela DW, pode parecer, em um primeiro momento, que o Golfo Pérsico está mesmo formando uma espécie de “Otan islâmica” para combater Israel, mas a realidade é um pouco diferente.
“Uma aliança no estilo da Otan não é realista porque envolveria os países do Golfo em guerras que eles não consideram vitais para seus próprios interesses. Nenhum governante do Golfo quer ser arrastado para um confronto com Israel em nome do Egito, por exemplo”, avalia Andreas Krieg, professor sênior da Escola de Estudos de Segurança do King’s College de Londres.
Os observadores acreditam, no entanto, que as coisas estão mudando após o ataque em Doha.
“A segurança no Golfo tem se baseado há muito tempo em uma lógica tributária, [em que] basicamente você paga alguém para cuidar da sua proteção. Após o ataque em Doha, essa mentalidade está começando a mudar, mas apenas lentamente”, argumenta Krieg.
“Formato 6+2”
Em vez de uma “Otan islâmica”, o que o mundo poderá ver é o chamado “formato 6+2”, explica Cinzia Bianco, especialista em países do Golfo no think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR). A expressão “6+2” refere-se aos seis países do CCG, mais a Turquia e o Egito.
Bianco acredita que esse formato provavelmente é discutido nos bastidores da Assembleia Geral das Nações Unidas nesta semana.
“No entanto, não se trata realmente de um acordo como o Artigo 5. É mais provável que se trate de coletivizar as posturas de segurança e defesa e, talvez o mais importante, enviar uma mensagem de dissuasão a Israel”, diz, alegando que o compromisso dos Estados do Golfo com a defesa mútua não é tão sólido quanto o dos membros da Otan.
Ajuda militar de outros lugares
Conforme Krieg, o “6+2” faz mais sentido do que uma “Otan islâmica” porque a Turquia é “o parceiro não ocidental mais confiável para o Golfo, com tropas já estacionadas no Catar desde 2017 e capacidade real de agir rapidamente em caso de crise. O Egito, porém, é mais complicado. O país tem força militar, mas sua confiabilidade é questionada em algumas capitais do Golfo”, argumenta.
E mesmo que um formato “6+2” esteja nos planos, isso acontecerá de forma lenta e discreta, observam Krieg e Bianco.
“A maioria das mudanças significativas ocorrerá nos bastidores. Veremos comunicados públicos, cúpulas e exercícios conjuntos. Mas o trabalho essencial, como o compartilhamento de dados de radar, a integração de sistemas de alerta precoce ou a concessão de direitos de base, permanecerá discreto”, prevê Krieg.
Também é possível que os países do Golfo, que têm dependido amplamente dos EUA, tentem expandir os laços de defesa com outros países.
“Há outros atores, como Rússia e China, que estão dispostos a substituir os EUA. Mas é improvável que qualquer ator externo substitua os americanos da noite para o dia”, afirma Sinem Cengiz, pesquisadora do Centro de Estudos do Golfo da Universidade do Catar.
Dependência americana
De qualquer forma, não há como os Estados do Golfo quererem isso, acrescenta Bianco. Eles continuam dependentes da tecnologia militar dos EUA. Por exemplo, após o ataque a Doha, o Catar buscou garantias dos EUA de que eles ainda eram seus parceiros.
“Uma observação importante aqui é que os EUA nunca se opuseram abertamente a esse tipo de regionalização da defesa. Na verdade, eles sempre incentivaram uma arquitetura única de defesa antimísseis balísticos para os países do Golfo”, ressalta Bianco.
Na verdade, uma maior integração militar no Golfo poderia significar mais presença dos EUA, pois os sistemas americanos são a espinha dorsal da defesa na região, explica Krieg.
“Mas o significado político mudou. Washington não é mais vista como a garantia máxima de segurança, mas como uma parceira cujo apoio é condicional e transacional. Os líderes do Golfo estão se adaptando à ideia de que os EUA têm interesses, em vez de aliados, e estão buscando um polo de segurança liderado pelo próprio Golfo, um meio-termo entre Irã e Israel”, conclui o especialista.