04/06/2018 - 16:15
Os protestos antigovernamentais generalizados na Nicarágua a princípio pareciam inofensivos: com pessoas idosas marchando contra uma reforma previdenciária que carcomia seus ganhos.
Por que então a brutal repressão que já deixou mais de 100 mortos e provocou veementes chamados para que o presidente Daniel Ortega renuncie?
O comandante reformado Roberto Samcam lutou junto com Ortega na guerrilha Sandinista que, em 1979, derrubou o ditador Anastasio Somoza e depois, durante uma década, serviu em seu Exército na guerra com os rebeldes da Contra, financiado pelos Estados Unidos.
Depois deixou as armas, co-fundou o Grupo Patriótico de Soldados Reformados e atualmente é um aberto crítico de Ortega.
Em uma entrevista à AFP, Samcam analisa a resposta do presidente à crise desatada em abril na Nicarágua. O resultado, diz, é toda uma vida de guerra.
PERGUNTA: O presidente nega que as forças de segurança tenham matado civis, mas organizações de cidadãos acusam paramilitares ligados ao governo de abrir fogo contra os manifestantes. Quem são?
RESPOSTA: “Daniel Ortega mente porque, efetivamente, essas forças parapoliciais e paramilitares foram organizadas e armadas pelo governo”.
“Identificamos (no caso dos paramilitares) que existem policiais à paisana, militares reformados que estão desmobilizados do serviço militar patriótico, alguns membros das extintas Pequenas Unidades de Forças Especiais, que eram as tropas especiais do Exército nos anos 1980”.
“No caso das forças parapoliciais, são compostas por muitos criminosos antissociais, pessoas das camadas mais pobres, muitos deles ligados ao consumo de drogas (…) Também existem presos que foram libertados e tiveram um treinamento rápido no Estádio Nacional (…)”.
P: Alguns dos manifestantes parecem ter sido assassinados com fuzis Dragunov, que, segundo dizem algumas pessoas, só estão disponíveis para a Polícia e o Exército. De onde vem essas armas?
R: “O Exército, em seu último comunicado, disse que tem o controle estrito de seu arsenal. O que não me deixa a menor dúvida que se é assim, tem o controle e o Exército está envolvido no fenômeno dos atiradores de elite”.
“Mas esses fuzis podem ter vindo da Venezuela. Em 2013, foi criada uma nova unidade de francoatiradores que está na segunda divisão de infantaria da Venezuela”
“Lá estão 3.500 fuzis que foram comprados da Rússia. Nem (o falecido presidente Hugo) Chávez em sua época nem Maduro se preocupariam em mandar cinco, seis, 10, 12 fuzis de francoatiradores como um favor para Daniel Ortega”.
P: Esses francoatiradores são altamente treinados?
R: É “necessária uma perícia especial se for usar para abater um alvo distante e em um momento em que esteja claramente definido. Mas se você vai abater alguém em uma manifestação de 100 mil pessoas não precisa de tanta perícia”.
“A mira ajuda a localizar e apontar. Além de uma posição vantajosa e uma arma que pode te dar uma distância de 800 metros”.
“Qualquer oficial do Exército que tenha sido reformado, militares da reserva que são fanáticos ao ‘orteguismo’, e estiveram na guerra nos anos 1980 também podem utilizá-los”.
“A grande irresponsabilidade de Ortega é ter armado todos esses antissociais (nas parapolícias). Isso é um Frankenstein que construiu e praticamente ganhou vida própria”.
P: Também acredita que o outro lado pode se armar?
R:”Essa é a grande tentação das pessoas”.
“Enquanto o protesto for cívico e o povo não estiver armado, ou se armando, o Exército não vai intervir em primeiro lugar. Mas, em segundo lugar, não dará o pretexto que Daniel Ortega quer de enfrentar uma rebelião armada”.
“Deve ficar claro que Ortega durante toda a vida foi um indivíduo belicoso. E ele está desconcertado porque agora se deparou com um protesto que não disparou um só tiro (…) Não é seu elemento. Por isso empurra. Vai fazer repressão, que a cada dia é mais violenta”.