DINHEIRO ? Os programas nos moldes do Bolsa Família vêm se multiplicando em diversos países. Quais são os benefícios dessas iniciativas? 

KABIR KUMAR ? Embora os modelos sejam diferentes, todos têm como efeito mais imediato o crescimento da renda. Hoje vemos projetos semelhantes na Índia, em Bangladesh e no Paquistão. Todos eles se inspiram no Oportunidades, lançado em 2002 pelo então presidente do México, Vicente Fox. No caso brasileiro, um dos fatores positivos é a vinculação do benefício à presença das crianças na escola.

 

DINHEIRO ? No geral, eles têm tido sucesso?

KUMAR ? O fato é que, quando as pessoas têm acesso a uma base financeira estável, as famílias podem poupar recursos em pequenas quantidades e, dessa forma, melhorar suas vidas no longo prazo. Existe um debate acalorado no campo político em torno dos programas de distribuição de renda. Mas eu analiso essa questão de forma simples, me debruçando mais sobre os benefícios gerados por esses programas. 

 

DINHEIRO ? E como o Bolsa Família se coloca em relação aos outros modelos mundiais?

KUMAR ? Trata-se de um bom programa. Apesar disso, são possíveis ajustes. Dos 13 milhões de beneficiados, apenas cerca de dois milhões possuem conta bancária. E, quando se permite o acesso ao sistema financeiro, cria-se um instrumento importante para um melhor planejamento financeiro por parte das famílias. Por outro lado, dá aos bancos a possibilidade de desenvolver produtos melhores e adequados a essas pessoas. A Caixa está fazendo um grande trabalho nessa área ao estimular o ingresso dessas pessoas no sistema financeiro.

 

DINHEIRO ? A renda oriunda do programa é apontada como uma das incentivadoras para o crescimento econômico do Brasil, por meio da promoção do consumo. Incentivar a poupança não pode afetar o consumo?

KUMAR ? As pessoas ricas costumam pensar dessa forma. O importante nesse debate é compreender como se dá a utilização dos recursos e se existe uma opção entre a aquisição do bem e a destinação de recursos à poupança. Não sei se haveria uma regra que deveria ser seguida pelos governos, de modo geral, para estimular uma coisa ou outra. Mas acho que existem ferramentas que os gestores públicos poderiam utilizar, como estimular a concorrência entre bancos e até entre empresas de outros setores, pela inserção dessas pessoas no mundo das finanças. Quem ganharia com isso seria a população. Na África, por exemplo, vemos as operadoras de telefonia ajudando na bancarização das pessoas.

 

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Boato de fim do Bolsa Família causa tumulto em agências da Caixa, no Recife, no sábado 18

 

DINHEIRO ? Como é possível falar em poupança, quando se trata de famílias de baixa renda?

KUMAR ? É possível ver isso de duas formas. A primeira é saber se essas pessoas têm a oportunidade de poupar. De qualquer modo, é preciso dar essa opção a elas. Por outro lado, é possível motivar as pessoas a fazer isso. O fato é que algumas pessoas são melhores do que outras em economizar. E isso não tem nada a ver com a sua condição social ou financeira. Em países como o Brasil, onde as famílias de baixa renda têm um perfil elevado de endividamento, existe um interesse das pessoas em poupar parte de seus recursos. Muitas famílias já perceberam que não é saudável viver endividadas. Mas, se já é difícil equilibrar as contas para quem possui um orçamento maior, imagine para quem tem pouco. 

 

DINHEIRO ? E que instrumentos resolveriam isso?

KUMAR ? Em todas as nossas pesquisas, pedimos que os entrevistados indiquem caminhos. No caso dos brasileiros, você pode não acreditar, porém uma sugestão muito recorrente foi a de que os bancos cobrassem taxas mensais maiores de manutenção de suas contas, desde que o dinheiro excedente fosse devolvido no fim do ano. Uma espécie de poupança forçada. Às vezes, instrumentos compulsórios que impeçam o acesso à totalidade dos recursos são necessários. Em Uganda, por exemplo, vimos o caso de uma pessoa que desejava comprar uma moto e, para manter a disciplina financeira, colocava o dinheiro em um cofre improvisado dentro de um tanque de combustível de carro. Foi a forma que encontrou para não ter acesso fácil aos recursos e assim fazer a economia para comprar a moto. 

 

DINHEIRO ? O que a pesquisa conduzida por sua equipe revela sobre o perfil de gastos dos brasileiros pobres?

KUMAR ? No Brasil, nosso foco são os beneficiados do Bolsa Família. O CGAP, em parceria com a consultoria paulistana Plano CDE, visitou 200 residências de integrantes do programa. Nosso objetivo é mapear suas finanças para identificar o perfil de receitas e despesas, produzindo o que chamamos de diário financeiro. Esse instrumento ajuda as pessoas a entender seu padrão financeiro e saber onde é possível cortar gastos. Mas já percebemos que o fluxo de entrada de recursos é maior que o de saída.

 

DINHEIRO ? Quais são as características do diário financeiro de uma família brasileira de baixa renda?

KUMAR ? Há uma ideia errada de que pobres fazem poucas transações financeiras. Na verdade, eles as fazem até em número maior do que os demais integrantes da pirâmide social. Isso porque eles contam com diferentes fontes de renda para completar o orçamento. Os integrantes da família possuem múltiplas atividades remuneradas: a irmã trabalha como empregada doméstica, a mãe cuida dos bebês das vizinhas, por exemplo. A pesquisa que estamos fazendo tem entre seus objetivos entender melhor o impacto disso no diário financeiro dessa camada da população.

 

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Casal Ademir Melo e Maria da Silva, de Goiana (PE),

um dos bolsões de miséria brasileira

 

DINHEIRO ? A experiência do Grameen Bank, criado em Bangladesh e especialista em microfinanças, poderia servir de modelo para países como o Brasil?

KUMAR ? Para o pobre, não importa o tipo de banco. Mas uma coisa é certa: esse grupo não se vê inserido nas instituições financeiras tradicionais. Em nossas pesquisas, um grande contingente revelou se sentir inti­midado, por exemplo, pelo aparato de segurança composto de portas giratórias e guardas armados. Não estou dizendo que os bancos têm de mudar seus esquemas de segurança, mas os gestores das instituições financeiras deveriam se esforçar mais para criar mecanismos para que essas pessoas percebam que o banco também é para elas.

 

DINHEIRO ? Até que ponto os bancos querem, realmente, atrair esse público?

KUMAR ? Todos os dirigentes de bancos brasileiros com quem conversei me disseram que focam seus esforços de crescimento na classe média emergente e nos mais pobres. Eles também alegam conhecer as necessidades e os desejos desses grupos. Mas não é isso que vemos na prática. Os bancos brasileiros ainda precisam aprender a operar com clientes de baixa renda. Existem muitas diferenças de perfis dentro das classes C e D e não basta saber a que classe pertence seu potencial cliente. Quando se trata desse contingente, muitas suposições se provam erradas na prática. Uma delas é imaginar que os pobres não podem ou não querem poupar ou que é arriscado emprestar para eles. O fato é que os integrantes da base da pirâmide desejam poupar e costumam pagar as suas dívidas.


DINHEIRO ? E o que fazer para convergir o interesse dos pobres com o dos donos dos bancos?

KUMAR ? O que falta é os ban­cos entende­rem me­lhor essas pessoas e suas necessidades. Embora as pesquisas não mostrem o quadro completo, elas são importantes e devem ser estimuladas, pois ajudam a indicar alguns caminhos a seguir. No Brasil, creio que as oportunidades para a criação de produtos financeiros destinados a pessoas de baixa renda passam pelo Bolsa Família.

 

DINHEIRO ? Nesse contexto, pode-se dizer que a bancarização e a formação de poupança podem ajudar essas pessoas a criar condições para abrir mão desse tipo de ajuda no futuro?

KUMAR ? É preciso deixar claro que os estudos do Banco Mundial não são voltados para ajudar a criar portas de saída para quem está nesses programas. Mas o que vemos na prática é uma forte relação entre esses fatores. Algumas famílias têm conseguido fazer a transição para uma faixa de renda maior graças ao acesso a instrumentos financeiros que os ajudam a administrar melhor sua renda.