26/11/2008 - 8:00
DINHEIRO – O que explica a crise? Excesso de liberalismo na economia?
ALOÍSIO ARAÚJO – Um problema dessa dimensão não pode ser resumido a poucos fatores. Há várias causas que se somam. Mas uma delas, na minha visão, é o excesso de intervenção na economia – e não o contrário.
DINHEIRO – Como assim?
ARAÚJO – No setor imobiliário americano, havia duas instituições garantidoras, Fannie Mae e Freddie Mac, que não são totalmente privadas nem públicas. São uma coisa híbrida. Elas davam garantia aos empréstimos imobiliários, o que minimizava a percepção de risco dos agentes privados. Depois, havia um grande lobby democrata no Congresso, para que as instituições financeiras estendessem os empréstimos imobiliários às populações de baixa renda.
DINHEIRO – Gente que não teria acesso ao crédito em situações normais?
ARAÚJO – Não sei dizer, mas o fato é que, com esses incentivos, alimentouse uma situação distorcida. Ao mesmo tempo, bancos de investimento pegavam as operações e as multiplicavam, criando seus derivativos, que somam dezenas de trilhões de dólares.
DINHEIRO – Mas isso não é prova da falta de regulação?
ARAÚJO – Falta de regulação não significa falta de intervenção. A situação do mercado imobiliário foi conseqüência das políticas públicas colocadas em ação. Mas, de fato, agora se percebe que há a necessidade de mais regulação no sistema financeiro internacional.
DINHEIRO – Isso significa o colapso da visão liberal sobre os mercados?
ARAÚJO – Se você considerar como visão liberal o pensamento do economista austríaco Friedrich Hayek, talvez a resposta seja verdadeira, porque ele defendia que o sistema financeiro poderia se auto-regular. Mas se você olhar para o Milton Friedman, não menos liberal, ele dizia que o setor financeiro deveria ser o mais regulado de todos. Desconfio até de que a regulação que sairá da crise não será tão dura quanto o Friedman gostaria.
DINHEIRO – Por que o Milton Friedman tinha essa visão?
ARAÚJO – Por uma razão simples. Os bancos estão sempre descasados. Eles têm uma captação curta e emprestam a prazos longos. Além disso, podem se alavancar. Por isso, estão sujeitos a crises de confiança. E, quando essas crises de confiança se instalam, eles reduzem o capital dos bancos e produzem a contração do crédito, com efeitos seríssimos sobre a economia. Exatamente o que estamos vendo agora.
DINHEIRO – Como o sr. vê as medidas para enfrentar a crise de liquidez?
ARAÚJO – É curioso olhar para trás e lembrar que, em 2004, o Henry Paulson, que ainda era presidente da Goldman Sachs e não secretário do Tesouro americano, foi ao Congresso para pedir aos parlamentares que reduzissem as regras e os controles sobre os bancos de investimento. Seu argumento era o de que o excesso de regulação comprometia a inovação financeira. Depois do que aconteceu, ele teve de rever suas posições.
DINHEIRO – E o plano que ele próprio propôs, de usar US$ 700 bilhões para comprar títulos dos bancos?
ARAÚJO – Era confuso, de difícil implementação e poderia gerar um problema para o sistema financeiro.
DINHEIRO – Por quê?
ARAÚJO – A idéia era dar liquidez aos títulos imobiliários dos bancos, criando um mercado secundário para os papéis. Só que isso iria precificar os títulos e os bancos teriam de marcálos pelo valor real no balanço. A conseqüência poderia ser prejuízos ainda maiores às instituições financeiras. As coisas começaram a melhorar quando o Gordon Brown, na Inglaterra, partiu para a capitalização direta dos bancos. Tanto que até os Estados Unidos adaptaram seu plano.
DINHEIRO – E a decisão de deixar o Lehman Brothers quebrar. Foi ou não um grande erro?
ARAÚJO – Fazer a análise a posteriori é sempre mais fácil. Mas lá, no calor da hora, é mais difícil decidir. Se o Lehman tivesse sido salvo, poderiam dizer que o dinheiro público, do Tesouro, das famílias americanas estaria sendo usado para resgatar banqueiros irresponsáveis. Reforçaria a idéia da socialização dos prejuízos.
DINHEIRO – Mas a socialização acabou acontecendo de qualquer maneira.
ARAÚJO – Sim, é verdade, e é por isso que o tema da regulação se tornou tão atual. O objetivo deve ser evitar que novas crises como essa se repitam.
DINHEIRO – O mea-culpa de Alan Greenspan, que era o “maestro” dos mercados, o surpreendeu?
ARAÚJO – Acho injusto atribuir a responsabilidade pela crise a uma pessoa. O Greenspan acreditava num mercado mais livre, menos regulado, mas ele era uma peça. Até mesmo culpar o governo do presidente George W. Bush me parece equivocado, porque, como eu disse, quem mais pressionou para alargar o mercado de crédito para aqueles que não poderiam pagar foram os congressistas democratas.
DINHEIRO – O encontro do G-20, na semana passada, trouxe contribuições positivas para esse debate?
ARAÚJO – Houve vários pontos importantes. Um deles, a necessidade de uma supervisão global sobre os bancos. Tomemos, por exemplo, o caso dos bancos europeus. Na Europa, as instituições financeiras são mais reguladas, mas acabaram se expondo a riscos nos Estados Unidos. Os bancos brasileiros ficaram de fora da crise, porque são menos internacionalizados. Outro ponto discutido no G-20 foi a questão dos bancos de investimento, que provavelmente terão que se submeter aos mesmos controles das instituições comerciais. E houve ainda a questão que mais interessa ao Brasil, que é a necessidade de incluir os emergentes na discussão dos problemas e das soluções. São países que têm um trunfo na mão, que é sua própria liquidez externa, em termos de reservas cambiais.
DINHEIRO – A quantidade de reservas pode ser um critério para definir o poder dos países em organismos como o FMI?
ARAÚJO – Acho que não só as reservas. A Rússia, por exemplo, hoje tem uma posição confortável, mas vem perdendo reservas em função da queda do preço do petróleo. Acho que se deve levar em conta ainda fatores como PIB, população, crescimento, etc.
DINHEIRO – O Brasil tem se portado bem diante da crise externa?
ARAÚJO – Em linhas gerais, a gestão econômica brasileira tem sido muito boa nos últimos anos. E as medidas recentes adotadas pelo Banco Central também apontam na direção correta, que é a de garantir liquidez no mercado interno. Os compulsórios, no Brasil, são muito altos e deveriam cair mesmo. Mas é importante que se diga que não temos um problema de crédito como lá fora. Aqui, o crédito representa 38% do PIB e tem que continuar crescendo. Nos Estados Unidos, era da ordem de 300% do PIB.
DINHEIRO – Como o sr. avalia o sistema financeiro brasileiro?
ARAÚJO – É sólido e bem menos alavancado do que no resto do mundo, o que significa que há espaço para ampliar o crédito sem gerar distorções.
DINHEIRO – E as conseqüências da crise na economia real? O cenário de uma nova depressão pode ser descartado?
ARAÚJO – Não gosto de falar em depressão, até porque é difícil defini-la. Certamente, haverá alguma queda de PIB nos países desenvolvidos e os emergentes continuarão ganhando espaço na economia mundial. Mas isso não significa o colapso da globalização. Se tivermos um ou dois anos de retração, que peso isso terá quando levarmos em conta todos os anos anteriores de crescimento?
DINHEIRO – Mas hoje estaríamos em que estágio da crise? O elevador está descendo ou subindo?
ARAÚJO – Acho que ainda tem muita notícia ruim para aparecer. Problemas de crédito podem surgir em outros segmentos do mercado americano. Mas desta vez, diferentemente do passado, há uma ação coordenada dos principais governos do mundo.
DINHEIRO – Isso elimina riscos maiores, como a volta do protecionismo?
ARAÚJO – Não sei se elimina, mas afasta. Todos que estudaram a Grande Depressão hoje são unânimes em dizer que a adoção do protecionismo comercial acentuou a crise de 1929, em vez de ajudar a resolvê-la. E, na reunião do G-20, na semana passada, falou-se em dar um impulso à Rodada Doha e também numa moratória que impeça medidas protecionistas.
DINHEIRO – Como o sr. avalia a vitória de Barack Obama?
ARAÚJO – O que eu vejo como positivo é a eleição de um governo legítimo, com maioria no Senado e na Câmara, e ems condições de enfrentar a crise.
DINHEIRO – O sr. trouxe ao Rio vários vencedores do Nobel de Economia para um ciclo de debates. Qual a importância do encontro?
ARAÚJO – Isso me entusiasma. Hoje, nossos estudantes podem estar atualizados com a fronteira do conhecimento na área econômica. Aqui, por exemplo, teremos grandes especialistas em regulação não só do sistema financeiro, mas de vários setores, o que tem aplicações, por exemplo, nas agências reguladoras e no estudo das fusões empresariais.
DINHEIRO – Ao longo dos anos, o sr. colaborou com algumas equipes econômicas, mas à distância. Por que nunca quis ir para o governo?
ARAÚJO – Fui chamado no fim da década de 90, pelo Armínio Fraga, para ajudar no desenho da nova lei de falências, que teve um impacto positivo no mercado de crédito. Outro ex-aluno, o Marcos Lisboa, teve um papel importante na implementação das reformas microeconômicas. Mas a minha ambição, desde cedo, sempre foi a de construir uma carreira sólida na área acadêmica, alinhada com as discussões internacionais. Dez anos atrás, por exemplo, nós fizemos um grande encontro de economistas como esse no Rio de Janeiro e trouxemos vários pesquisadores. Depois, cinco que estiveram aqui ganharam o Nobel. Dos que estão desta vez, acho que há uns três com chances reais.