12/02/2024 - 18:21
Soa dolorosamente atual: um povo indígena é quase dizimado em nome da colonização. Filme anti-western evoca essa história passada no Chile há mais de um século. E lembra que os selk'nam e sua cultura continuam vivos.O filme Os colonos é um tipo especial de western, baseado em fatos reais: em 1893, um militar britânico, um mercenário americano e um mestiço chileno partem para uma expedição à Terra do Fogo. Seu contratador, o latifundiário Menéndez, os encarregou de “proteger” suas imensas propriedades.
Isso significa: eliminar com violência a população indígena local. Em seu longa-metragem de estreia, selecionado para o Festival de Cannes, o cineasta chileno Felipe Gálvez Haberle denuncia um capítulo brutal da história da América do Sul, que soa lamentavelmente atual.
O comando da morte massacra os nativos do povo dos selk'nam, nômades de estatura elevada que vivem da caça – inclusive das ovelhas dos colonizadores. Tiros, morte e desgraça, tendo como pano de fundo o impressionante cenário montanhoso do sul da Patagônia: um genocídio que passou quase despercebido pela comunidade mundial.
Haberle torna a violência visível, revelando assim um dos capítulos mais sombrios da história do Chile. “É um filme que fala do passado, mas que chega até o presente e reflete sobre coisas que acontecem hoje”, descreveu o diretor em entrevista ao canal de TV alemão ARD.
Os colonos dá a impressão de ser um faroeste, mas não é. Pois quem diz que a aquisição de terras para a civilização autoriza que se destrua com violência a ordem selvagem originária?
“O cinema do século 20 foi um cúmplice ativo do processo de colonização da América”, acusa Haberle. “O western era um gênero de propaganda, que justificava a carnificina das populações indígenas”: ao transformar o assassínio em diversão e apresentar os nativos como vilões, “era um cinema extremamente racista”.
Passado vivo em fotos e relatos de um missionário
Os primeiros europeus chegaram à região na ponta sul do continente americano em 1520, com a expedição de volta ao mundo do português Fernão de Magalhães. Ao avistarem a fumaça de numerosas fogueiras, apelidaram o arquipélago Terra do Fogo.
Porém, a colonização só começaria em 1850, quando desembarcaram na Isla Grande os primeiros imigrantes da Argentina, Chile e da Europa. Criadores de ovelhas, caçadores de ouro, missionários, além de doenças desconhecidas, praticamente dizimaram a população local.
Supõe-se que os indígenas chegaram à Patagônia e à Terra do Fogo há cerca de 10 mil anos. Assim como outros quatro povos, os selk'nam enfrentaram as condições inóspitas do labirinto insular, com seu clima polar combinando sol abrasador e frio antártico, e atravessavam em pequenos grupos a paisagem árida, entrecortada por riachos.
Os selk'nam não construíram cidades nem monumentos, não deixaram para a posteridade artefatos de cerâmica, muito menos língua escrita. No entanto, fotos históricos e relatórios científicos do missionário Martin Gusinde (1886-1969) lembram ainda hoje sua cultura.
Enviado pelos Missionários do Verbo Divino, o padre e antropólogo austríaco empreendeu quatro viagens de estudos entre 1918 e 1924, documentando em imagens e áudio a vida dos “índios da Terra do Fogo”, na época já quase extintos. Em 2015, a editora Hatje Cantz publicou essas fotos num abrangente volume ilustrado, Begegnungen auf Feuerland. Selk'nam, Yámana, Kawesqar(Encontros na Terra do Fogo).
Hoje preservadas no Instituto Anthropos dos Missionários do Verbo Divino, na cidade de Sankt Augustin, próximo a Bonn, as fotos de Gusinde mostram os nativos, por exemplo, em práticas rituais: na cerimônia Hain, um círculo de jovens nus dança para espantar a chuva e invocar o sol.
Em outras fotografias, os corpos estão inteiramente pintados com listras, círculos, pontos ou superfícies coloridas, dependendo da finalidade e da ocasião. “Gusinde foi um dos primeiros etnólogos a procurar contato direto com os povos”, explica o bibliotecário do Instituto Anthropos, Harald Grauer. E, de fato: ninguém jamais chegou tão perto dos fueguinos quanto o sacerdote austríaco.
Dos zoológicos humanos ao reencontro com as tradições
Publicado em 2021 pela editora La Oveja Roja e já traduzido para diversos idiomas, o romance documental em quadrinhos Selk'nam – Fragmentos de un extermínio, dos caricaturistas chilenos Carlos Reyes e Rodrigo Elgueta, lança um olhar crítico sobre o papel da Igreja no genocídio desse povo.
Isso porque, com os criadores de ovelhas e os caçadores de ouro, vieram também os missionários. Em reação aos protestos contra o genocídio, as autoridades do Chile passaram a juntar os selk'nam em grupos. Alguns foram levados para um abrigo provisório no porto de Punta Arenas, ou para a cidade de Ushuaia. Muitos foram parar na missão de Isla Dawson, no Estreito de Magalhães. Assim, segundo críticos, apesar de movidos pelas melhores intenções, os missionários se transformaram em aceleradores do genocídio.
Responsáveis por outro capítulo vergonhoso da colonização da Terra do Fogo foram os zoológicos humanos , que, do fim do século 19 até o início da década de 1930, atraíam um público de milhões na Europa, como antecessores dos reality shows modernos. Também integrantes dos selk'nam foram transportados ao Velho Mundo e comercializados como habitantes primitivos da América do Sul.
Líder europeu do ramo era o zoo de Hamburgo Tierpark Hagenbeck, porém, as “exposições etnológicas” faziam parte da programação cultural normal de muitas outras metrópoles, por exemplo, no Jardim Zoológico de Berlim ou no Jardin d'Agronomie Tropicale de Paris.
Esse capítulo, em especial o destino dos seres humanos expostos nos zoos, ainda é pouco estudado. Uma exceção é o trabalho do etnólogo Lars Frühsorge, diretor da Coleção Etnológica de Lübeck. Em cooperação com o Museu da Natureza e Meio Ambiente, ele organizou a mostra Hoffnung am Ende der Welt. Von Feuerland zur Osterinsel (Esperança no fim do mundo. Da Terra do Fogo à Ilha de Páscoa).
Para tal, viajou ao arquipélago no Chile, a fim de encontrar-se com descendentes dos selk'nam e mostrar-lhe fotos dos objetos expostos. Desse modo, constatou quão grande é o significado cultural da arte da cestaria para os fueguinos.
“Antes, durante e depois do genocídio, até hoje, nós tecemos cestos. Colhemos juncos, nos unimos à natureza e chegamos novamente ao território dos nossos ancestrais”, revelaram-lhe.
Na opinião de Frühsorge, “tais diálogos são muito mais úteis do que pura observação científica”. É uma lição que os museus etnológicos deveriam aprender, insiste, caso contrário “em breve eles não vão mais existir”.
O emocionante épico de Felipe Gálvez Haberle não é a única prova de que os selk'nam chegaram para ficar aos tempos atuais. Em 2023, o governo chileno os reconheceu oficialmente como comunidade indígena existente. Desde 2004, alguns descendentes vivem em 35 mil hectares designados pelo governo argentino. Organizados na Comunidad Indígena Rafaela Ishton, eles se ocupam em revitalizar suas tradições e cultura.
Nesse meio tempo, para grande parte do público em geral o primeiro contato com o admirável povo dos selk'nam será acompanhando a expedição assassina dos caçadores de cabeças, a mando de um latifundiário. Os colonos estreou no Brasil em 1º de fevereiro de 2024, e chega aos cinemas da Alemanha em 15 de fevereiro.