09/02/2025 - 9:24
Mudanças nos currículos escolares geram temores de uma islamização por parte do governo de transição. Milhões de crianças não frequentam a escola, e muitos prédios foram destruídos.No mês passado, quando mais de 3,5 milhões de alunos sírios fizeram seus primeiros exames desde a queda do ditador Bashar al-Assad, eles não precisaram mais responder a perguntas sobre o tema “nacionalismo sírio”. Isso representa uma verdadeira revolução em política educacional. O ministro interino da Educação, Nazir al-Qadri, decidiu retirar o tópico do exame, pois no passado ele serviu principalmente para glorificar Assad e seu regime.
“Essa foi uma boa notícia para meu filho mais velho”, explicou Anas Joudeh, fundador da iniciativa civil Movimento de Construção Nacional em Damasco. “Mas os sinos de alarme estavam tocando para nós. Agora resta saber o que será ensinado no próximo semestre.”
Como pai de um filho na sétima série e de uma filha na segunda série, Joudeh teme que o grupo islâmista Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS), que está no poder desde a queda de Assad, possa mudar o currículo para se adequar à sua ideologia – assim como fez Assad. “Isso é um problema. Na verdade, é uma catástrofe.”
Tendências islâmicas?
A matéria “nacionalismo sírio” foi eliminada do currículo como parte de uma série de mudanças anunciadas em janeiro pelo Ministério da Educação. Entre outras coisas, a frase “defesa da nação” foi substituída por “defesa de Alá”, e os “condenados e errantes” foram substituídos por “judeus e cristãos”. Além disso, o termo “mártir” não descreve mais uma pessoa que morre por seu país, mas alguém que dá sua vida “por Deus”.
Al-Qadri, que antes trabalhou por cinco anos no Ministério da Educação na província de Idlib, controlada pelo HTS, minimizou as mudanças. Ele afirmou que suas instruções se referiam apenas à remoção do conteúdo que glorificava o regime de Assad e à introdução da bandeira revolucionária da Síria em todos os livros didáticos.
Além disso, disse que “imprecisões” no currículo da educação islâmica foram corrigidas. Segundo ele, comitês especializados se encarregarão de analisar as alterações, embora ainda não tenha sido definida uma data para isso ocorrer. Entretanto, as mudanças devem ser implementadas a tempo para o início do próximo ano letivo em setembro.
Apelo ao diálogo inclusivo
Anas Joudeh continua cético. Ele teme que as mudanças repentinas possam ser uma indicação de que o governo transitório do HTS não cumprirá sua promessa de realizar uma conferência de diálogo nacional. Essa conferência foi originalmente planejada para refletir a sociedade multi-religiosa e multiétnica da Síria. No entanto, Joudeh está preocupado com o fato de que o governo de transição poderia, em vez disso, tentar ancorar sua própria ideologia no currículo.
Vários professores também protestaram em frente ao Ministério da Educação em Damasco no início de janeiro. Em particular, eles criticaram o fato de que a decisão de mudar o currículo foi tomada sem qualquer envolvimento dos professores ou da sociedade civil. Eles também questionaram o direito do governo de transição de fazer tais mudanças.
A milícia HTS continua a ser classificada como uma organização terrorista pelos EUA e pelas Nações Unidas devido às suas ligações com o chamado “Estado Islâmico” (EI) e com a Al Qaeda. Na verdade, a milícia deveria servir apenas como um governo de transição. No entanto, ainda não está claro quando o poder será entregue a um governo eleito.
O líder do HTS, Ahmed al-Sharaa, havia declarado inicialmente que o governo provisório que ele lidera permaneceria no cargo somente até março de 2025. Mais tarde, declarou que o HTS governaria o país até que uma nova Constituição fosse elaborada dentro de dois ou três anos – e possivelmente até as eleições seguintes.
“Os líderes sírios devem envolver as organizações da sociedade civil e a população na formação e construção da nova Síria, levando em conta suas experiências e perspectivas”, disse Alice Gower, da consultoria Azure Strategy, sediada em Londres. “O sistema educacional, em particular, é um fator decisivo na criação de unidade e identidade nacional.”
Milhões de crianças sem educação formal
No entanto, o currículo não é a única preocupação dos pais sírios, pois 14 anos de guerra prejudicaram gravemente o sistema educacional da Síria em vários níveis.
Por exemplo, o país foi dividido em diferentes blocos de poder durante a guerra. O noroeste era governado pelo grupo HTS, enquanto o nordeste ainda é governado pelos curdos, que estabeleceram uma região semiautônoma no local.
Durante os últimos anos da guerra, o governo de Damasco controlava apenas cerca de dois terços do país. Isso fez com que as crianças fossem escolarizadas em sistemas educacionais completamente diferentes – se é que iam à escola.
Nas áreas controladas pelo governo, as escolas e universidades permaneceram abertas durante a guerra. Em outras regiões, no entanto, milhões de crianças não tiveram a oportunidade de frequentar a escola. Em vez disso, elas participaram da educação informal, por exemplo, em centros comunitários ou por meio de plataformas online.
“Cerca de 2,5 milhões de crianças não puderam ir à escola por causa da guerra”, disse James Elder, porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
O estado desolador da infraestrutura educacional também é uma das graves consequências da guerra. “Uma em cada três escolas sírias foi destruída ou está sendo usada como alojamento para famílias deslocadas”, afirmou Elder. Duas coisas são cruciais agora, segundo o especialista: “Em primeiro lugar, é necessário desenvolver um currículo inclusivo que reflita a diversidade cultural e social do país. Em segundo lugar, é necessário investir para fortalecer os sistemas educacionais existentes e garantir que todas as crianças sírias tenham acesso à educação contínua.”
Quanto mais tempo uma criança fica fora da escola, maior é o risco de ela se tornar vítima de trabalho infantil, casamento infantil, tráfico de pessoas ou recrutamento por grupos armados. Anas Joudeh, da iniciativa Movimento de Construção Nacional, também enfatiza a importância de preparar os professores para o processo de transição e o futuro político do país.
“Isso também contribui para o processo de reconciliação nacional”, diz Joudeh. Ela diz que também não há como evitar a discussão sobre os valores e símbolos da nação. Nesse contexto, os currículos, segundo ela, são “o problema mais urgente”.