10/12/2008 - 8:00
É IMPOSSÍVEL ENCONtrar qualquer placa de “vende- se” ou “aluga-se” no 1,4 quilômetro da rua 25 de março, centro de São Paulo, com suas 350 lojas e mais de três mil estandes esmagados em espaços minúsculos. Nos oito quarteirões que formam o quadrilátero comercial mais movimentado do Brasil, está tudo completamente ocupado. Não se trata apenas do valor exorbitante cobrado pelos donos do pedaço – o metro quadrado custa em média R$ 10 mil, quase 20% acima do preço do terreno na sofisticada rua Oscar Freire, nos Jardins. É que não passa pela cabeça de ninguém sair de lá e deixar para trás 400 mil clientes que circulam pela região todos os dias, e mais de um milhão em dezembro. E, para aqueles que cogitam a idéia, não é preciso sequer contratar uma corretora de imóveis. Nenhuma atua na região. Mesmo a mais ínfima hipótese de saída de um comerciante gera rumores numa velocidade tal que a lista de interessados se forma em poucos dias. Acabou-se criando ali um clã fechado de famílias ricas, que já estão na terceira ou quarta geração, com filhos e netos sendo preparados para perpetuar o domínio na região – que soma vendas anuais de R$ 4 bilhões.
A DINHEIRO passou a última semana em conversas com os principais comerciantes do local para compreender o estilo de negócios e as razões da perpetuidade das atividades. Uma primeira análise colocaria em evidência as, digamos, “vantagens fiscais” que marcam a operação de alguns comerciantes. Fez fama na região a máfia da compra sem nota depois que veio à tona o emaranhado de operações que levou à prisão o chinês Lao Chong, maior contrabandista do País. Na tentativa de virar essa página, descendentes de libaneses e sírios, que se instalaram na região na década de 30, tentam profissionalizar a gestão e imprimir um ritmo novo, num movimento que ainda apresenta uma série de antagonismos.
Os locais reúnem o que há de mais novo e de ultrapassado no mundo financeiro e do varejo. Nos simples e calorentos escritórios de onde são comandados os negócios da 25 de Março, fala-se em diversificação de portfólio e se discutem ferramentas de proteção cambial ao telefone. Nas minúsculas salas da diretoria, ainda se empilham notas fiscais de pedidos antigos, ao mesmo tempo que tabelas de projeções da variação do dólar ocupam parte das paredes. Cotações de produtos são feitas por telefone e barganhadas ali – não há nada de leilão virtual. Mas dezenas de cálculos de formação de estoque preenchem pastas estrategicamente separadas, num sinal de controle maior dos custos. “Muita coisa mudou aqui e foi preciso se adaptar. O que não dá para mudar é a forma de atuar, com a mesma mão de ferro do princípio”, diz Miguel Giorgi Júnior, filho da “dona” Angelina Ginotti, ex-promotora de vendas das lojas Sears e italiana fundadora da rede A Gaivota, criada há 50 anos. Júnior e o irmão, Ulisses, trabalham no fundo de uma das três lojas da empresa, numa transversal à 25 de Março, ocupando uma sala com ventilador de ar e a foto da mãe pregada na parede. Eles entendem que não dá para crescer sem mudar de postura. Dizem saber, por exemplo, que precisam de uma boa loja virtual – e ainda não a têm. Assim como entendem que, para continuar na rua, têm de sair da 25 de Março – algo impensável uma geração atrás. “Temos um plano de abertura de lojas em bairros como São Miguel Paulista e vamos abrir um ponto na Nova 25 de Março, próximo ao Largo 13 de Maio [zona sul da capital]. Muita gente não vem à 25 e precisamos desse público”, diz Júnior.
Essa facilidade de ajustar o negócio ao tempo tornou a companhia de tecidos Niazi Chohfi um dos negócios mais bem-sucedidos da região – atualmente o maior centro comercial aberto da América do Sul. Cerca de quatro mil pessoas passam pelas quatro lojas da empresa todos os dias. Lá, eles trabalham de forma descentralizada, algo recomendado pelos manuais do varejo global, talvez até sem saber. Reginaldo Chohfi, 65 anos, não tem o menor problema em delegar poder ao filho único, Reginaldo Filho, 25 anos, formado em Administração pela FGV, ex-empregado de corretora de valores e com anos de estudo em Milão. Aqui, ele é responsável pelo departamento de lingeries e abriu a própria companhia, a Niazi Tex. Afirma que a empresa fez avanços quando parou de vender apenas tecido para comercializar cama, mesa e banho – itens com maior valor agregado e margens mais gordas. Com o telefone na mão, Filho interrompe a conversa seguidas vezes para resolver pendengas, como a compra de gavetas para uma das unidades em expansão. Pai e filho trabalham num escritório cravado no meio da 25, numa portinha que leva a uma grande escada íngreme e a uma sala aberta. Ambos têm discernimento de sobra. Se o rapaz acha que a 25 de Março precisa dos chineses e coreanos (e, com isso, evita polemizar a questão), o pai diz que não há por que criticar o aumento na venda de bugigangas na região. “Não existe o bom ou o ruim, existe o que é certo e certo é ter gente circulando aqui”, diz Reginaldo, filho de Niazi Chohfi, que veio da Síria na virada do século XX para morar e trabalhar na 25 (no antigo número 157).
Com o aumento das famílias e a geração de novos herdeiros, já há uma clara divisão de responsabilidades nas empresas. Fernando e André Abdala, 33 anos e 35 anos, respectivamente, donos da centenária lojas Doural, adotaram essa postura. Lá, cada um cuida de seu território. O caçula administra a área de presentes (de pratos a cafeteiras), enquanto o irmão fica com o segmento de tecidos e importados. Esse sistema difere daquele dos antepassados, que tomavam decisões em conjunto, o que levava a discórdias na família. Também mudou a forma como os donos escolhem os 65 mil itens que lotam as prateleiras. É preciso vender o que nem todo mundo tem – uma forma de se diferenciar na batalha diária travada com outros comerciantes. “Viajamos muitas vezes ao ano para trazer novidades”, diz Fernando, que mantém alguns trejeitos ensinados pelo avô, Assad Abdala, como o de circular de calça jeans e camiseta pela loja para controlar os funcionários e escutar comentários de clientes. A grande tacada veio há oito anos, quando Fernando decidiu criar um local específico para o público de alto poder aquisitivo no segundo andar da loja. Ali os clientes contam com um ambiente bem ventilado, produtos de mais de R$ 700 e atendimento longe do tumulto do andar de baixo. Em cima, há também um espaço para noivos, além da coordenação das vendas pela internet. Essa variação de foco faz com que o tíquete médio seja de R$ 90. “Pretendemos abrir em breve uma filial no bairro dos Jardins ou em algum shopping”, conclui ele, que espera apenas a poeira da crise baixar para fazer novos investimentos.
Essa tendência parece não fazer parte dos planos de atuação do Rei dos Armarinhos, dirigido por Gilberto Sarruf. Dois dos três filhos dele trabalham na loja, fazendo de tudo um pouco. Por que o filho caçula não trabalha lá? “Ele teve de trabalhar antes em outros lugares para provar que era bom, senão os irmãos não dariam crédito a ele nunca”, afirma o pai.
O que não parece mudar na 25 de Março é a extrema discrição com que os donos das lojas tratam determinados assuntos. Falar em faturamento é quase uma ofensa. “Todo mundo acha que nadamos no dinheiro. Não tem nada disso”, diz Ulisses, da A Gaivota. Segundo ele, cada vez mais o grosso das vendas são os produtos de baixo valor, como bijuterias, brinquedos e importados chineses para casa. Estima- se que 50% das lojas ainda estejam nas mãos dos árabes, mas a outra metade pertence aos asiáticos e brasileiros. A invasão das quinquilharias teria feito a Koraicho, da família sírio-brasileira de mesmo nome, fechar o seu gigantesco prédio numa rua paralela à 25 de Março. A Koraicho foi referência na região por mais de 60 anos e disputava a atenção nas ruas com a Armarinhos Fernando. Há dez meses, o local está com tapumes e portas abaixadas. “Vão abrir um shopping ali, com 1,5 mil boxes e aluguel de R$ 2 mil por unidade. Vão ganhar mais dinheiro assim”, conta um amigo do patriarca da família de sírios, que desembarcou em Santos nos anos 20 para se tornar mascate. Na época, a 25 era um local sem luz elétrica e com lama para todos os lados. Tempos completamente diferentes dos atuais.