O dia mal havia amanhecido em São Paulo quando 240 homens da Polícia Federal chegaram à sede da Daslu, a butique mais famosa do País, na quarta-feira 13. Armados com metralhadoras, eles estavam acompanhados de fotógrafos e equipes de TV. A missão, desta vez, era cumprir 33 mandados de busca e apreensão e quatro ordens de prisão ? uma delas, a da empresária Eliana Tranchesi, dona da Daslu. Eliana foi acordada e presa em sua casa, no Morumbi, acusada de sonegação, contrabando e formação de quadrilha, numa operação batizada de Narciso, em homenagem ao personagem grego que se encanta com a própria imagem refletida na água. A operação Narciso seria apenas mais uma das rotineiras ações da Polícia Federal, não fosse um fato novo. Desta vez, os empresários reagiram. ?Estão afrontando o estado democrático de direito com esses shows pirotécnicos?, disse Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). ?Estamos vendo demonstrações de arbitrariedade e sensacionalismo?, afirmou. No mesmo dia, a Fiesp divulgou uma nota oficial, condenando prisões antecipadas. ?Somos contra qualquer tipo de sonegação, mas quando a polícia age dessa forma é a cidadania que está em perigo?, endossou Armando Monteiro Neto, presidente da Confederação Nacional da Indústria.

No caso específico da Daslu, que fatura R$ 410 milhões por ano, a loja é acusada de ter montado um esquema de subfaturamento de importações, utilizando tradings nos Estados Unidos. Segundo o procurador da República Matheus Magnani, peças de grifes famosas tinham o valor de importação anotado de forma irrisória, de modo a que se recolhesse menos imposto. Ele citou como exemplo uma peça Gucci registrada por cinco dólares e vendida por R$ 4,3 mil na loja. Sem precisar o quanto teria sido sonegado, Magnani falou em milhões. Em seu depoimento à Polícia Federal, onde ficou presa durante dez horas, Eliana disse não estar ciente das operações contábeis da Daslu, uma vez que seu papel seria cuidar do marketing da loja. Seu advogado, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, questionou a prisão. ?É mais um caso obscuro, em que a empresa sequer sofreu uma autuação fiscal prévia da Receita Federal?, disse ele. ?A lei está sendo rasgada, com aplausos de uma parcela da mídia que tem canal livre com a polícia?.

A ação contra a Daslu também foi criticada por não seguir as regras de uma norma publicada pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, há duas semanas. A portaria 1.287 estabelece que as ações da PF devem ser discretas e sem pessoas alheias ao cumprimento da diligência, ou seja, sem imprensa. Tal norma, ignorada no caso Daslu, deve-se à pressão da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem se queixado de invasões a escritórios de advocacia. ?Das duas uma: ou a portaria não tem eficácia, ou alguém terá de ser punido pelo ministro?, diz o advogado José Roberto Batochio, membro do conselho jurídico da Fiesp e um dos autores da nota. A operação Narciso também foi criticada por um ex-secretário da Receita Federal. ?O foco da Receita não deve ser a prisão; o foco é arrecadar com autuações e processos administrativos?, disse Everardo Maciel.

Nos episódios recentes, as prisões têm vindo antes das autuações. Foi assim com a cervejaria Schincariol, cujos sócios e executivos, acusados de montar um esquema de sonegação de R$ 1 bilhão, ficaram dez dias presos. Até hoje, porém, a empresa não foi autuada pela Receita ? sua concorrente, a Ambev, autuada em R$ 2 bilhões, não sofreu qualquer blitz policial. ?Dá vontade até de desistir e de vender tudo?, desabafou Adriano Schincariol a amigos próximos. ?No Brasil, inverteu-se o princípio constitucional da presunção de inocência?, avalia Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça. ?Todos são culpados até que provem sua inocência?. Para o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio D’Urso, casos assim podem até afugentar investidores. ?Quem vai querer empreender, se pode ser preso antes mesmo de um processo judicial??, indaga. Para o consultor Carlos Ferreirinha, da MCF Fashion, especializada no mercado de luxo, a Daslu terá prejuízos. ?As vendas vão cair e as grifes internacionais serão mais rigorosas com a loja?, diz.

Com reportagem de Elaine Cotta e Carlos Sambrana

 Prisão também nos Estados Unidos

No dia da operação contra a Daslu, o empresário americano Bernard Ebbers foi condenado a 25 anos de prisão. Ex-dono da WorldCom, companhia telefônica que já controlou a Embratel, Ebbers foi acusado de organizar um esquema de fraudes de US$ 11 bilhões. ?Ele foi o líder da atividade criminal?, disse a juíza Barbara Jones, do distrito de Manhattan, ao anunciar seu veredito. Quando a WorldCom quebrou, em junho de 2002, vieram à tona as maiores fraudes contábeis da história dos Estados Unidos. O processo judicial teve início logo depois da bancarrota e Ebbers, com 63 anos, deverá passar o resto dos dias atrás das grades. A diferença, em relação ao caso brasileiro, é que Ebbers está sendo preso após uma longa discussão judicial, em que todas as partes, inclusive os investidores lesados, apresentaram argumentos. Eliana Tranchesi, da Daslu, foi presa antes do processo.

 

 

?Isso tem aprovação popular?

No dia da prisão da empresária Eliana Tranchesi, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, foi procurado pela deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), que também é advogada criminalista. A seguir, o diálogo:

?Acho um absurdo essas invasões de madrugada em casa de pessoas que trabalham. Se vocês têm alguma suspeita, convoquem para esclarecer e abram processo. Se houver culpa, então prendam. Mas invadir na madrugada com televisão para humilhá-los!?, disse Zulaiê.

?A culpa não é da polícia. É da Justiça e do Ministério Público. A Polícia Federal só cumpre ordens?, respondeu o ministro.

?Mas o que vocês estão fazendo é política, não é justiça. Porque juridicamente não precisava fazer assim. Vocês deram o mesmo show com a Schincariol, prenderam 60 pessoas, incluindo funcionários que não tinham nada a ver, e mantiveram presos por dez dias. Parece a época de Hitler, com o governo promovendo prisões em massa?, retrucou a deputada.

?Também tínhamos denúncias?, respondeu Bastos.

?Mas a Justiça Federal e a Polícia Federal jamais iriam fazer isso se o governo federal não estivesse por trás. Eles estão cumprindo as suas ordens, ordens do ministro da Justiça. E o Marcos Valério? Tem tudo contra ele, tem milhões inexplicáveis na conta bancária e o PT ainda fica contente com o depoimento mentiroso dele. E o Delúbio? Por que você não manda prender? Parece que existe uma lei para empresários e outra lei para o PT.? A deputada ainda argumentou que a lei brasileira permite que os sócios da Daslu paguem o que devem antes da denúncia. E que, se pagarem, a polícia sequer pode mais formalizar processo, quanto mais prender.

?Ah é, nesse ponto você tem razão?, teria dito o ministro.

?Então, se não tem nem processo, por que prender??

?Isso é bom. A sociedade defende essas ações. Isso tem grande aprovação popular. Acho que isso mostra serviço do governo?, apontou o ministro.

?Não, mostra desserviço. Vocês vão passar para a história como o governo que mais cometeu arbitrariedades. Vocês estão fazendo isso para desviar a atenção da corrupção no governo Lula?, disse Zulaiê.