25/07/2014 - 20:00
Garra e paixão. As palavras titulares durante a Copa saíram de campo nas duas últimas partidas do torneio. A Seleção Brasileira amargou sete gols no jogo contra a Alemanha, na fatídica terça-feira 8 de julho, que a eliminou da final, e outros três contra a Holanda, no sábado 12. Vexatório para um pentacampeão mundial, o fracasso teve, no entanto, o mérito de reacender a discussão sobre a necessidade de o futebol melhorar tanto seu desempenho dentro das quatro linhas quanto a gestão dos clubes e entidades fora delas.
“A crise desencadeada pela goleada histórica é só a ponta do iceberg dos problemas de organização do futebol”, diz Fernando Pinto Ferreira, sócio-diretor da consultoria paranaense Pluri, especializada em economia do esporte. “A responsabilidade para desenvolver o futebol passa pelos clubes, associações e empresas”, afirma Pedro Trengrouse, pesquisador da Fundação Getulio Vargas e consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Mundial de 2014. No caso dos clubes, parte das mudanças vem sendo feita com a escalação de craques de uma área distante dos gramados: o mercado financeiro.
Em contraposição ao amadorismo dos cartolas da velha guarda, times populares como Corinthians, Flamengo e Fluminense, e menos votados como o catarinense Chapecoense, recrutaram executivos. Os financistas da bola introduziram palavras novas como gestão, métrica e governança. E o jogo começa a virar, pelo menos nos relatórios. Isso vale para o Flamengo, o clube de maior torcida do Brasil. Eleito presidente em janeiro de 2013 e com mandato até o fim de 2015, o administrador de empresas carioca Eduardo Bandeira de Mello, 61 anos, executivo com 35 anos de experiência no BNDES, não pensou apenas em montar um time campeão em campo.
Ao assumir, Bandeira de Mello escalou um conselho financeiro de craques, com nomes como o de Cláudio Pracowinick, sócio-diretor do banco de investimentos Brasil Plural; do economista Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central, responsável por gerenciar a dívida do clube; e o de Rodrigo Tostes, ex-CEO da siderúrgica alemã ThyssenKrupp, atual vice-presidente de finanças. Bandeira de Mello também estruturou um conselho consultivo não remunerado, do qual fazem parte Luiz Eduardo Baptista, presidente da SKY, responsável pelo marketing.
Rodolfo Landim, ex-presidente da OGX, titular do planejamento, e Alexandre Póvoa, sócio da gestora Canepa, a cargo dos esportes olímpicos. Também participam informalmente Rômulo Dias, CEO da Cielo, e Rubén Osta, presidente da Visa. Eles têm o desafio de equipar o time do bairro da Gávea com uma governança próxima à das empresas abertas. Esse trabalho já começa a aparecer. Se no Brasileirão a situação não está tão boa (um melancólico 20º lugar, na zona do rebaixamento), no departamento financeiro o jogo é outro. “Tomamos medidas que podem fizeram toda a diferença”, diz Póvoa.
Em um ano, os conselheiros ajudaram o clube a renegociar uma dívida de R$ 757,4 milhões, a maior do futebol brasileiro. Um dos benefícios foi pôr um ponto final ao caos no caixa. “Antes da renegociação, a qualquer momento algum credor poderia penhorar a receita dos jogos e comprometer os pagamentos”, diz Póvoa. O acerto das contas também permitiu ao Flamengo obter certidões negativas de débito fiscal e trabalhista, o que ampliou as fontes de financiamento. O clube pôde solicitar empréstimos bancários, principalmente, e pedir patrocínios de empresas, a bola da vez no esporte atual.
Bandeira de Mello comemora. “Agora, conseguimos captar dinheiro por meio da Lei de Incentivo ao Esporte”, diz ele. “Os valores ainda são pequenos, cerca de R$ 1,3 milhão, mas voltamos à normalidade e esperamos que esse volume aumente nos próximos anos.” Bandeira de Mello tem pressa. O governo também, pois, no Brasil, futebol é assunto de Estado e Copa do Mundo decide eleição. “A derrota histórica da Seleção evidencia a necessidade de mudanças urgentes no futebol brasileiro”, afirmou o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, no dia 10 de julho, dois dias após o massacre praticado pelos pés dos alemães.
Julho não havia acabado e a presidenta Dilma Rousseff já entrara em campo, reunindo-se com ex-atletas e dirigentes de clubes na segunda-feira 21. O Legislativo também está no aquecimento. Em agosto, será votado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.753, já apelidado de Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte, do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ). O projeto de lei proporciona condições facilitadas aos clubes para renegociar suas dívidas em até 25 anos, mas exige, em contrapartida, a adoção de práticas de governança e de transparência, com a publicação de relatórios financeiros auditados.
“A situação do futebol brasileiro é aflitiva e essa lei pode trazer um alívio financeiro aos clubes”, diz Bandeira de Mello.“No entanto, aqueles que não se prepararem para ela podem até fechar as portas.” Os times que abusarem das faltas terão mais do que um cartão vermelho. As punições incluem o rebaixamento da equipe e sanções aos dirigentes. Assim como o Flamengo, outros estão se preparando para os novos tempos. É o caso do Corinthians Paulista. Empresário e auditor, Raul Corrêa da Silva está acostumado a encontrar empresas em situações complicadas.
Em 2007, quando assumiu a vice-presidência de finanças, ele se deparou com um clube sem patrocínio, a caminho da segunda divisão e com uma dívida que nem o padroeiro São Jorge seria capaz de calcular. Sua primeira ação foi auditar as contas, mapear a dívida de R$ 95,7 milhões, renegociá-la e iniciar a publicação de relatórios. A renovação também chegou às estruturas de poder do clube. As decisões passavam por um colegiado obsoleto de 400 conselheiros, 200 deles em cargos vitalícios. “Mudamos o estatuto para que os conselheiros vitalícios dessem espaço a profissionais”, diz Corrêa da Silva.
Paralelamente, ele foi conhecer a experiência do Barcelona, na Espanha. “Convidei uma equipe do time catalão para vir a São Paulo orientar nossos executivos.” O exemplo ajudou o clube a trabalhar sua marca, criando uma rede de 120 lojas no Brasil, o que propiciou a geração de novas receitas. No ano passado, o Corinthians faturou R$ 316 milhões, ante R$ 117,5 milhões em 2008. Como o Flamengo e o Corinthians, o Fluminense também escalou profissionais. Comandado desde 2012 pelo advogado carioca Peter Siemsen, o clube apostou na informática, implantando um sistema de gestão empresarial do tipo ERP.
Siemsen negociou, ainda, 450 ações trabalhistas, avaliadas em R$ 35 milhões, acumuladas entre 2007 e 2010, e reduziu as despesas financeiras, que representavam 21% do faturamento em 2012, para 15% no ano seguinte. “Nosso próximo desafio é transformar a área de futebol em um núcleo à parte e administrá-lo como uma empresa com transparência e governança”, diz Siemsen. A gestão também faz diferença em equipes menores. O Chapecoense, clube do oeste catarinense, com receitas de R$ 35 milhões anuais, aposta na austeridade.
“Sempre trabalhamos com poucos recursos”, diz o empresário Sandro Pallaoro, presidente do time de Chapecó. “Por isso, nossa estratégia foi montar bons times sem salários astronômicos.” O Chapecoense quase foi fechado em 2005 e viveu altos e baixos até 2011, quando fez uma faxina em suas contas e apostou na gestão, o que lhe permitiu subir para a Série A do Brasileiro, em 2013. O clube também está cuidando do futuro e criou dez escolinhas de futebol em sua cidade. Além de receita, isso garante futuros craques. “Das 300 crianças que já passaram por nossas escolas desde 2013, 35 foram para nossas categorias de base.”
A necessidade de mudança é justificada pelos números. Economicamente, o futebol brasileiro leva goleadas piores que a sofrida pelos comandados por Felipão. No Exterior, futebol é um negócio – e dos grandes. Com base nas estatísticas da Fifa, a consultoria suíça ATKearney calculou que o faturamento global dos clubes em 2013 foi de US$ 255 bilhões, incluindo ingressos, venda de passes de jogadores, direitos de arena, patrocínios e licenciamento. A Inglaterra é a primeira da tabela, com arrecadação de US$ 76,7 bilhões, equivalente a 30% do total, seguida pela Alemanha, com US$ 51,1 bilhões.
No ano passado, o futebol movimentou o equivalente a 3,82% do Produto Interno Bruto da Inglaterra. Na Alemanha, foi o equivalente a 1,5% de sua economia. Nesse departamento, o Brasil novamente perde de goleada. Em 2013, o futebol brasileiro movimentou US$ 5,1 bilhões, pífios 2% do faturamento mundial, e 0,24% do PIB brasileiro. Se a importância do futebol brasileiro na economia fosse semelhante à do alemão, o esporte das chuteiras movimentaria mais de US$ 30 bilhões por ano. Em 2013, a receita somada dos cinco maiores times brasileiros foi de R$ 1,46 bilhão, inferior ao faturamento de R$ 1,57 bilhão do espanhol Real Madrid.
Para complicar, os times brasileiros arrastam dívidas tributárias e trabalhistas superiores a R$ 4 bilhões. Os especialistas acreditam que a melhoria dos clubes depende apenas de trabalho e gestão. A Alemanha, que havia caído nas primeiras fases da Eurocopa em 2000 e 2004, mostrou que é possível reinventar-se. A Associação de Futebol Alemã investiu US$ 1 bilhão em 366 centros de treinamento e obrigou todos os clubes filiados a ter escolas de futebol, com os times mais ricos subsidiando os pobres.
Os investimentos tornaram a Bundesliga, principal torneio alemão, na competição com maior média de público do mundo. A consistência do trabalho renderia seus melhores frutos no Maracanã, oito anos depois. Se as cinco estrelas da camisa da Seleção Brasileira foram obtidas graças ao talento individual de nomes como Garrincha, Pelé, Nilton Santos, Didi, Romário, Ronaldo e Rivaldo, a sexta estrela vai depender de deixar a tradição de lado e assumir que o futebol se reinventou nos últimos anos. Fica a torcida para que o trauma dessa Copa seja o começo de uma grande mudança no esporte mais amado do País.