10/03/2004 - 7:00
O queijo Roquefort torna-se único quando adquire bolor. Para chegar ao seu ápice, a reverenciada iguaria francesa atravessa cerca de nove meses a mercê dos fungos. O grande segredo é identificar o momento exato em que ele pode ir às mesas. Trata-se de uma arte de relojoaria. É preciso saber a hora exata de consumi-lo, nem antes, nem depois. O Guia Michelin, a bíblia da gastronomia mundial, viveu seus 104 anos de existência no ritmo de um Roquefort. A cada doze meses, ao longo de um século, ele A cada doze meses, ao longo de um século, ele chegava às livrarias com as estrelas, de uma a três, que erguiam lendas e destruíam outras. Infalível como um relógio suíço. Este ano, contudo, o Michelin passou um pouquinho do ponto.
Um fungo nocivo minou o saboroso tempero da tradicional publicação. Seu nome? Pascal Rémy, inspetor do Michelin por mais de 16 anos. Na semana passada, ao mesmo tempo em que o volume vermelho desembarcava nas lojas, Rémy revelou à imprensa internacional alguns podres do guia e jogou na lama o bem mais precioso do Michelin: a sua idoneidade. Um dos segredos mais bem guardados da cozinha internacional é a identidade dos avaliadores franceses. O falastrão Rémy tirou a máscara e azedou o molho da instituição, sólida como a Torre Eiffel. Entre as denúncias do ex-funcionário estão acusações de que os restaurantes são checados esporadicamente, a equipe de especialistas é pequena e a maioria dos estabelecimentos com três estrelas, a nota máxima, estão abaixo do padrão. As afirmações de Rémy caíram como uma bomba no mundo da alta culinária. Ele quebrou, numa alusão ao código de honra e sigilo dos mafiosos, a Omertà e pôs em risco um negócio milionário. O Michelin já vendeu 30 milhões de cópias em um século. Seu faturamento anual é de US$ 7,5 milhões. As diatribes de Rémy ferem essa história.
?Com cinco inspetores na ativa, é impossível visitar 4 mil restaurantes e, menos ainda, comer em todos eles?, disparou. O mais grave nisso tudo são as afirmações de que muitas das casas listadas não são sequer visitadas. ?Cada avaliador prova uma média de 200 estabelecimentos?, concluiu. A metralhadora disparada por Rémy atira para todos os lados e não poupa ninguém. Sobrou até mesmo para mitos como Paul Bocuse, o criador da Nouvelle Cuisine, e Alain Ducasse, um dos mais famosos chefs de cozinha do planeta. De acordo com Rémy, os dois são intocáveis ? façam o que fizerem diante das panelas.
?O Michelin criou chefs que tornaram-se mais poderosos que o próprio guia?, diz Rémy. Bocuse, segundo ele, foi transformado numa espécie de monumento tombado pelo patrimônio histórico. É sagrado: todos os anos o seu restaurante, o L?Auberg du Pont de Collonges, na região de Lyon, ostentará a trinca de estrelas. Com Ducasse é igual. O Louis XV, no principado de Mônaco, surge sempre com a nota máxima. Houve um momento em que o Michelin lhe subtraiu uma láurea e as tropas de Ducasse desembarcaram na editora ligada à fábrica de pneus como os soldados de Bush no Iraque. Em 2001 o Louis XV perdeu uma estrela. ?Ducasse não parou de ligar enquanto não devolvessem a avaliação máxima?, conta Rémy. O próprio Ducasse já admitiu, sim, ter feito lobby.
Para um leigo no assunto, a disputa por uma simples estrela soa como briga infantil. Mas por trás dessa picuinha entre avaliadores e chefs de cozinha, há um negócio extremamente lucrativo. Cada estrelinha carimbada no Guia Michelin equivale a US$ 1 milhão a mais de faturamento anual para um restaurante. Nesse caminho, Alain Ducasse, dono de três endereços com três estrelas cada um, tornou-se um homem de negócios, virou manda-chuva de uma holding que inclui hotéis e escolas. A rigor, não aparece atrás de um fogão há cinco anos. O orgulho de Ducasse, pendurado no sucesso que lhe atribui o Michelin, é o avesso do que ocorreu em 2002 com um outro chef, Bernard Loiseau, comandante do renomado La Côte d?Or. Deprimido e estressado com a concorrência, ele se matou logo depois de ser informado que seu restaurante teria a nota rebaixada no livrinho púrpura. O assunto ganhou as manchetes em todos o mundo. Era a triste prova de prestígio do guia ? ao menos até Rémy abrir a boca.
Mas cabe uma pergunta diante da polêmica: por que somente agora Rémy se rebelou contra o lugar em que trabalhou por 16 anos? Sabe-se que ele pediu ao editor do Michelin para publicar um diário de memórias sobre a sua experiência na casa. Como os árbitros da boa mesa não queriam os segredos revelados, promoveram Rémy e pediram-lhe para que esquecesse a idéia. ?Ele tentou usar este manuscrito para barganhar aumento de salário e poder?,
diz Derek Brown, o homem que manda na publicação. ?Nós não aceitamos este tipo de pressão. Rémy violou um contrato de confidencialidade?.