Um dos objetos que mais marcaram a gestão de Jair Bolsonaro, além do agasalho falsificado do Palmeiras, foi a caneta Bic. Desprovida de elegância e sofisticação, a singela esferográfica azul — que custa menos de R$ 1 em qualquer lugar do País e que simbolizava a suposta humildade do líder da nação — esteve nas mãos do ex-presidente na maior parte do tempo em que aparecia assinando Medidas Provisórias e decretos. Entre os despachos mais controversos estavam a liberação de armas, o incentivo ao desmatamento, a isenção de impostos para videogame e jet-ski em plena pandemia, o sigilo de um século para assuntos que poderiam envolver seu nome, entre tantas polêmicas que escreveram em linhas tortas um conturbado capítulo da história econômica, política e social do Brasil.

Desde o domingo (10), no entanto, os personagens e os elementos do enredo são outros. Com uma caneta alemã Montblanc Writers (presente de um militante petista do Piauí, em 1989) Lula assinou, em três dias, 52 decretos presidenciais para revogar medidas editadas no governo anterior e definir novos rumos para a economia e para a estrutura da administração pública federal. Com o vice, Geraldo Alckmin, também nomeado ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), Fernando Haddad (ministro da Fazenda) e Simone Tebet (ministra do Planejamento), Lula e seus principais companheiros no novo mandato não economizaram na tinta.

Rebatizaram o Auxílio Brasil para o nome original, Bolsa Família, resgataram critérios mais rígidos para concessão de posse e do porte de armas, devolveram a autonomia de fiscalização a órgãos ambientais, como Ibama e ICMBio, e assinaram embaixo de algumas promessas de campanha, como tornar o benefício de R$ 600 uma política permanente de transferência de renda.

Com sua Montblanc de coleção, Lula assinou 52 decretos nos primeiro três dias de mandato, revogando as canetadas de Bolsonaro. (Crédito:Mauro Pimentel)

No campo econômico, o primeiro ato — e talvez o mais urgente, até então — foi prorrogar a isenção de PIS, Cofins e Cide incidentes sobre combustíveis (Medida Provisória 1.157 de 2023), que continuam reduzidas até 31 de dezembro de 2023 para o diesel e 28 de fevereiro para gasolina e etanol. Isso impedirá o aumento imediato do preço dos combustíveis e a consequente alta da inflação. Mesmo assim, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) teve de ser acionado para investigar reajustes repentinos em locais de maioria bolsonarista, como no triângulo mineiro, Espírito Santo e nos estados do Sul. O órgão está investigando se há formação de cartel como protesto à eleição do governo Lula.

O boicote que nos postos de combustíveis é uma suspeita, dentro do ex-governo é uma constatação. No mesmo dia da posse, minutos depois de subir a rampa com a primeira-dama Janja, com a cachorrinha Resistência e oito representantes da sociedade brasileira, Lula também anulou o decreto assinado pelo então presidente em exercício Hamilton Mourão — durante a fuga de Bolsonaro para a Flórida —, que reduzia à metade o PIS e Cofins sobre as receitas financeiras das empresas que adotam a tributação do lucro real, as maiores do País. Essas receitas são aquelas obtidas com rendimentos de aplicações feitas no mercado financeiro, renda fixa, juros cobrados dos fornecedores por atraso, atualização de créditos tributários e descontos financeiros obtidos pela empresa. A canetada de Mourão, em 30 de dezembro, reduziria em R$ 5,8 bilhões o pagamento de impostos federais por grandes empresas em 2023.

Lula ainda assinou um despacho no qual determina a retirada da Petrobras do processo de desestatização. O ato envolve empresas como Dataprev, Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep), Correios, Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e Pré-Sal Petróleo (PPSA). A decisão teve impacto negativo no mercado financeiro, que esperava ansiosamente pelo processo de privatização da Petrobras (leia mais a seguir).

Mas nada disso parece assustar tanto o mercado quanto a extinção do antigo modelo de teto de gastos, que deverá ser substituído por uma nova âncora fiscal. Na segunda-feira (2), a Bolsa caiu mais de 1% e o dólar subiu para R$ 5,36 (alta de 1,51%) depois de Lula chamar o teto de gastos de “estupidez”. O teto foi criado por Henrique Meirelles em 2016, durante o governo Michel Temer. Para o analista de investimentos da Benndorf Research e especialista em direito tributário João Lucas Tonello “as falas do presidente sinalizam aumento de carga tributária à população e necessidade de se aumentar a arrecadação”. E há outra questão: “A forma que a ideologia do partido vê como correta é aumentar carga tributária, movimento que não é bem-visto pelos empresários e mercado financeiro”, afirmou.

CLIMA QUENTE NA PETROBRAS Estatal está no centro dos debates tanto pela questão do controle de preços quanto pela suspensão da privatização. (Crédito:Shutterstock)

Na tentativa de evitar uma síndrome do pânico nos empresários e investidores, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, garantiu no dia de sua posse, na segunda-feira (2), que vai enviar ao Congresso Nacional ainda no primeiro semestre a proposta de um novo arcabouço fiscal, em substituição ao teto de gastos. Em seu primeiro discurso no cargo, Haddad buscou passar uma mensagem de responsabilidade com as contas públicas, combate à inflação e prioridade aos temas sociais. “Não estamos aqui para aventuras”, disse. “Estamos aqui para assegurar que o País volte a crescer para suprir as necessidades da população naquilo que são seus direitos constitucionais em saúde, educação, no âmbito social e, ao mesmo tempo, para garantir equilíbrio e sustentabilidade fiscal”, afirmou. O ministro, que tem mestrado em economia, destoa de muita gente do time de transição, grupo para quem a gastança pública deveria ser liberada. Tanto que deixou a Prefeitura de São Paulo (foi prefeito de 2013 a 2016) com dinheiro em caixa e dívidas reduzidas.

DÍVIDA PÚBLICA Já o novo secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou na quarta-feira (4) que a equipe econômica do governo Lula trabalha para reverter a trajetória explosiva da dívida pública, com R$ 231 bilhões de déficit previsto no Orçamento deste ano. Em sua primeira entrevista no cargo, ele assumiu o compromisso de evitar que o endividamento ultrapasse o patamar de 80% do Produto Interno Bruto (PIB). “Se nada for feito, pode atingir de fato uma trajetória explosiva, mas não é o que vai acontecer”, disse à Folha de S.Paulo. As frentes de atuação incluem revisão de desonerações e de despesas.

Seja qual for a nova proposta, é sabido que o novo governo terá uma presença mais incisiva em setores chaves da economia, na avaliação de Camila Abdelmalack, economista-chefe da Veedha Investimentos. “O revogaço de Lula sinaliza aos investidores uma maior participação do Estado na orientação da política econômica, no sentido de maior intervencionismo”, afirmou. O receio dos investidores, segundo ela, é que o governo repita tropeços do passado, como a tentativa malsucedida de intervir na política de preços da Petrobras. “Os investidores acabaram resgatando da memória os fantasmas de um passado recente, o que levou a Petrobras a uma situação caótica, com endividamento de mais de R$ 300 bilhões, muito maior do que o valor de mercado da companhia à época.”

COMPROMISSO Como a Petrobras é o calcanhar de Aquiles do governo Lula III, o futuro presidente da estatal, Jean Paul Prates, aproveitou a posse de Alckmin na quarta-feira (4) para acalmar o mercado. Disse que não haverá intervenção direta do governo nos preços praticados pela estatal. O mercado, traumatizado com o falso liberalismo econômico de Bolsonaro, que demitiu quatro presidentes da Petrobras em quatro anos de governo por discordar da política de preços, até que concedeu mais um voto de confiança. O efeito foi imediato e os papéis da petroleira entraram em forte alta, mesmo com a queda no preço do barril de petróleo. As ações fecharam com ganho de 3,18%.

Embora Lula, Alckmin, Haddad e Tebet estejam posando sorridentes nas mesmas fotos, há grande expectativa na forma como eles executarão seus programas. Tebet, do Planejamento, tem posições diferentes das de Haddad em temas como teto de gastos (ela votou a favor em 2016), autonomia do Banco Central e privatizações. Como ela será responsável pelo comando do Orçamento, do Patrimônio da União e do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), um dos dois terá de ceder em nome da harmonia e governabilidade junto ao Congresso, onde a ex-senadora tem experiência e articulação. Esse, aliás, é um ponto nevrálgico do novo governo. Além de conquistar a simpatia e apoio de Rodrigo Pacheco (Senado) e de Artur Lira (Câmara), terá de lidar com um Congresso de maioria, por enquanto, bolsonarista. Mas, segundo Tebet, isso não será um problema. “Fui escolhida para ser ministra justamente para uma pauta em que tenho alguma divergência”, disse.

Na visão do economista Davi Lelis, sócio da Valor Investimentos, o revogaço de Lula e sua equipe representa uma guinada em muitos rumos para onde o País estava seguindo. Mas ele acrescenta ao caldo um fator com alto potencial de turbulência e cujo desdobramento ainda não pode ser mensurado: os próximos capítulos políticos. Principalmente em relação ao ex-presidente Bolsonaro. “Sem dúvida, a quebra dos sigilos de 100 anos pode resultar em uma inelegibilidade do Bolsonaro, na fuga dele ou até uma prisão do ex-presidente, se ele estiver no Brasil”, afirmou. “Isso pode, e vai, movimentar os mercados nos próximos tempos.” Essa parte da história, no entanto, ainda é apenas um papel em branco.

O que Bolsonaro fez, e Lula desfez

Uma das principais promessas da campanha, o decreto de Lula suspende o registro de novas armas de uso restrito da categoria conhecida como caçadores, atiradores e colecionadores, os CACs. A decisão também vale para as autorizações de novos clubes de tiro no País. O decreto também exige que autorizações de porte tenham comprovação de necessidade da arma. E todas as armas adquiridas desde maio de 2019 precisarão passar por recadastramento.

Sigilo de 100 anos não durou 1

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Lula determinou que a Controladoria-Geral da União (CGU) reavalie, em até 30 dias, decisões tomadas no governo anterior que mantiveram em segredo determinadas informações, como o processo disciplinar sobre o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o acesso de filhos de Bolsonaro ao Palácio do Planalto, gastos de cartões corporativos e o escândalo no Ministério da Educação envolvendo pastores de igrejas evangélicas. O desafio agora é divulgar dados como esses sem desrespeitar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Fundo Amazônia está de volta

Outro decreto também reestabeleceu o funcionamento do Fundo Amazônia, suspenso no primeiro ano do governo Bolsonaro, quando Alemanha e Noruega interromperam as doações porque os comitês que geriam os recursos foram extintos. Com isso, R$ 3,2 bilhões que já haviam sido doados ficaram congelados. Ambos os governos europeus já se comprometeram em reativar as doações.

Fim do apartheid de alunos com deficiência

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O novo governo revogou o decreto que permitia a criação de escolas especiais voltadas apenas a alunos com deficiência e o fim da inclusão desses alunos em classes convencionais. O então ministro bolsonarista da Educação Milton Ribeiro chegou a dizer, em entrevista ao programa Novo Sem Censura, da TV Brasil, que “alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos outros”.

Combate ao garimpo ilegal

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Uma das mais relevantes medidas na área ambiental, Lula revogou o decreto de Bolsonaro que flexibilizava a atividade de garimpo ilegal. O novo governo determinou que o Ministério do Meio Ambiente apresente em 45 dias uma proposta de nova regulamentação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), endurecendo a punição e a fiscalização.

Auxílio Brasil volta a ser Bolsa Família

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No dia da posse, Lula assinou a Medida Provisórias (MP) que viabiliza o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família, que tinha sido rebatizado de Auxílio Brasil pelo governo anterior, e que torna o benefício permanente.

Privatizações vão para a geladeira

CORREIOS É NOSSO A estatal está fora dos estudos para privatização enquanto Lula for presidente. (Crédito:Divulgação)

O movimento que mais chamou a atenção na esfera econômica da primeira semana de Lula como presidente foi o pacote de revogação de processos de privatização de oito estatais, entre as quais Petrobras e Correios, iniciados durante o governo do ex-presidente Bolsonaro sob a chancela de Paulo Guedes. O então ministro apostou na venda das estatais e redução da máquina pública como trunfos de sua gestão, mas sofreu resistência do próprio Bolsonaro. O fundador da Localiza e ex-secretário de Desestatização de Guedes e Bolsonaro, Salim Mattar, pulou do barco já em 2020 alegando dificuldade em dar andamento ao plano. “Não querem privatizar para manter o toma-lá-dá-cá”, afirmou Mattar.

Se na gestão Bolsonaro a privatização era mais uma de suas fake news, Lula tem deixado claro que não vai dar andamento à venda das empresas. Já no domingo (1º), logo após a posse, o presidente assinou despacho com a determinação de retirada dos planos de privatizações das seguintes estatais: Petrobras, Pré-Sal Petróleo S.A (PPSA), Correios, EBC, Dataprev, Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A., Serpro e imóveis da Conab.

Lula justificou no despacho a necessidade de assegurar uma análise rigorosa dos impactos da privatização sobre o serviço público ou sobre o mercado. No despacho, o presidente ordenou que os ministros revoguem os atos que qualificaram as estatais no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República ou que as incluíram no Programa Nacional de Desestatização. Em maio, o então ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, entregou o pedido para que fossem realizados os estudos para a privatização da Petrobras e da PPSA, a estatal do pré-sal. Um lance mais para a plateia do que para que se tornasse realidade.

Da boca para fora, o governo Bolsonaro tinha entre as suas diretrizes avançar nas vendas e concessões de ativos públicos, o que na prática nunca aconteceu. O boicote acontecia dentro das próprias fileiras palacianas — rusga escancarada na inimizade e antagonismo entre os ex-ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Paulo Guedes (Economia), ex-amigos que viraram desafetos. Na disputa entre a Política e a Técnica, ganhou a primeira e perdeu o País. Agora o jogo é outro. Durante a campanha e após a vitória na eleição, Lula criticou as privatizações e disse que seu governo não venderá estatais. O tema só deverá ser tratado pelo próximo governo eleito, em 2026.