05/02/2003 - 8:00
“No México, de Fox, os ativos na informalidade somam cerca de US$ 315 bilhões”
“Cesar Maia me mostrou as favelas do Rio, mas há muito mais gente em áreas ilegais”
DINHEIRO ? Uma das principais propostas do governo Lula na área social é a regularização da posse imobiliária em áreas carentes. Qual seria o impacto econômico de uma medida como essa?
HERNANDO DE SOTO – Em sua essência, a história da América Latina é uma história de invasões. Nossos antepassados, de uma forma ou de outra, foram invasores, assim como os primeiros espanhóis ou portugueses que aqui chegaram. Gradualmente, as posses de grandes glebas de terra foram sendo legalizadas. A diferença é que, no século 20, o volume de invasões cresceu de forma assombrosa, especialmente nas metrópoles. Há cidades, como Porto Príncipe, no Haiti, em que esse problema cresceu 15 vezes nos últimos 35 anos. A conta que eu faço aponta que os ativos das pessoas pobres em países do Terceiro Mundo, não contabilizados pelo sistema legal, seriam da ordem de US$ 10 trilhões.
DINHEIRO ? No Brasil, estima-se em 6 milhões o número de pessoas vivendo em áreas classificadas como favelas.
SOTO ? Na primeira vez que fui ao Rio de Janeiro, andei pela
cidade com o prefeito Cesar Maia e ele me mostrou as favelas,
como se aquela população representasse cerca de 20% do
total da população. Depois, me mostrou outros morros, e eu perguntava: ?É uma favela??. Ele dizia que oficialmente não. No
Peru, é muito parecido. De acordo com as estatísticas, o número de domicílios ilegais é próximo a 20%. Mas, na prática, chega-se a quase 70% de invasões.
DINHEIRO ? Como deve ser conduzida a reforma?
SOTO ? A primeira questão que eu coloco é: ?O que se pretende dar aos moradores com a regularização??. Se o objetivo é apenas segurança, uma reforma não é tão necessária, uma vez que em áreas como favelas os moradores já contam com uma espécie de proteção informal prestada pelo crime organizado. Mas se o objetivo é permitir que toda essa população use seus ativos da mesma forma que se faz nos Estados Unidos ou na Europa, aí sim uma reforma vale a pena. O imóvel ou o lote poderá ser dado em garantia nos bancos numa operação de crédito, o morador poderá ter acesso ao sistema de financiamento imobiliário, terá como montar legalmente um negócio próprio e assim por diante.
DINHEIRO ? E que cuidados devem
ser tomados?
SOTO ? O primeiro é saber se um título de posse do governo e uma escritura efetivamente serão reconhecidos pelos mais pobres como algo legítimo. Isso porque hoje, nas favelas de qualquer país do Terceiro Mundo, há dezenas de títulos informais, reconhecidos como válidos pelos moradores. Além disso, é preciso reformar todo o sistema de cartórios, para que os títulos possam rapidamente ir de uma direção a outra, sendo efetivamente usados como capital. Do contrário, serão guardados debaixo do colchão apenas como proteção em relação a futuros invasores e não como um instrumento capitalista.
DINHEIRO ? Como o sr. chegou àquele valor de US$ 10 trilhões?
SOTO ? A primeira coisa que acontece em reforma desse tipo, quando feita da forma certa, é a valorização imediata do ativo regularizado. A casa passa a valer entre três e cinco vezes mais, imediatamente. A razão é muito simples. Quando se vende um imóvel sem uma escritura, a segurança jurídica é muito menor. Portanto, os ativos dos pobres passam a valer mais. O segundo ponto é o acesso ao crédito. Os US$ 10 trilhões são fruto de uma conta que leva em conta o número de pessoas residentes em áreas invadidas e o valor estimado das propriedades.
DINHEIRO ? Regularizar a posse basta para incluir os pobres no sistema capitalista?
SOTO ? É um passo fundamental, mas não basta. Uma nova questão é o que acontece dentro das casas. Imagine que se tenha uma confecção, uma empresa de alimentos, de móveis, uma oficina ou um pequeno negócio qualquer. Um empreendedor não terá interesse em manter registros claros dos seus negócios se tiver medo de que um fiscal de impostos logo irá visitá-lo. O que nós descobrimos é que não basta regularizar as propriedades, mas também os negócios que estão do lado de dentro. Se isso não for feito, a tendência é as pessoas voltarem a escapar do sistema legal. A casa é uma parte importante, mas é só parte do projeto de reforma. O que as pessoas irão calcular é qual o custo de ser legal e qual o custo de ser ilegal. Se a legalidade for mais eficiente, ele irá para o sistema formal.
DINHEIRO ? Isso é possível?
SOTO ? Dizem que as pessoas nas favelas não pagam impostos, mas isso não é verdade. Em primeiro lugar, pagam tributos sobre tudo o que compram. Mas, além disso, pagam juros maiores quando caem nas mãos de agiotas, pagam taxas por serviços de proteção em favelas, pagam aos policiais. Nossas pesquisas mostram que, quando se soma todos os custos para viver fora da lei, acaba sendo mais ou menos a mesma coisa do que estar no sistema.
DINHEIRO ? No passado, alguns programas desse tipo fracassaram no Brasil porque acabaram incentivando novas invasões. Não há esse risco?
SOTO ? É verdade. É por isso que outra parte do programa deve ser a criação de um sistema para obtenção de terras e lotes que seja mais barato do que o sistema ilegal. Quando alguém invade uma área pública em qualquer país da América Latina, o risco é muito alto. Primeiro, o sujeito arrisca sua vida. Depois, a da própria família. Além disso, vive em uma região onde não há praticamente nada, onde não existe eletricidade, saneamento etc. Ninguém gosta de invadir. Portanto, é importante legalizar as casas, os negócios que estão lá dentro e o próprio sistema. Se não, a questão de fato é pertinente.
DINHEIRO ? Quais são os casos de sucesso de reformas desse tipo?
SOTO ? Os grandes casos de sucesso aconteceram no século passado e no Ocidente. Pense nos Estados Unidos. Muitos dos americanos obtiveram suas casas invadindo terras. Só que as invasões acabaram 100 anos atrás. Isso porque eles encontraram meios de tornar o respeito à lei mais barato do que o bangue-bangue dos justiceiros. Outros países também se desenvolveram assim, como a Coréia, o Japão e Taiwan.
DINHEIRO ? Como assim?
SOTO ? No início dos anos 40, milhões de japoneses migraram para dois países que abriram suas portas para os asiáticos. Foram basicamente Brasil e Peru. Os Fujimoris vieram para cá e os De Sotos não foram para o Japão por uma razão muito simples. Porque no Peru o Produto Interno Bruto por habitante era 20% maior do que no Japão e 100% maior do que na Coréia e Taiwan. Em 1945, Peru e Brasil eram países mais ricos do que o Japão. E hoje? Quem é mais rico?
DINHEIRO ? A que o sr. atribuiu isso?
SOTO ? A grande razão para o salto de prosperidade japonês foi o fato de o general McArthur, que governou o Japão durante a ocupação do pós-guerra, ter regularizado o setor informal, que representava à época 60% da economia do país. O que ele fez? Criou um sistema de respeito ao direito de propriedade dos pobres, eliminando invasões. Não há registros de saltos de prosperidade sem que tenha havido uma grande reforma fundiária, dando propriedade aos pobres. É essa a grande saída para a pobreza.
DINHEIRO ? E na América Latina? O que aconteceu no Peru?
SOTO ? No setor urbano do Peru, nós legalizamos 75% do sistema. Em El Salvador, onde nós também trabalhamos, isso será próximo a 100%. Lá, o sistema de hipotecas imobiliárias no país, que não existia, hoje chega a US$ 80 milhões por ano. Alguns progressos estão acontecendo.
DINHEIRO ? Como foi sua atuação com o governo Fujimori?
SOTO ? Começamos em 1991. Entre 1993 e 1995, o Peru teve as maiores taxas de crescimento do mundo. Depois, infelizmente, os programas não foram mantidos.
DINHEIRO ? É possível demonstrar que essas reformas ampliam o potencial de crescimento?
SOTO ? Eu não calculei o potencial de crescimento, mas sim o estoque de riqueza não contabilizada. Veja o México. Lá, o número de pessoas que, de alguma forma ou de outra, vivem fora do sistema formal é de 78% da população. Isso envolve ainda negócios de US$ 6 bilhões nas microempresas ilegais. O valor dos ativos que os pobres possuem é de US$ 315 bilhões, volume sete vezes maior do que as reservas da Pemex, a estatal petrolífera do país.
DINHEIRO ? O Brasil é parecido?
SOTO ? As economias do Brasil e do México têm muitas semelhanças. Se vocês brasileiros estudassem os resultados de processos de legalização, evitariam erros do passado. Nos anos 80, vocês tiveram um programa para escriturar propriedades rurais do Nordeste. Era financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pelo Banco Mundial. A idéia era dar escrituras dos lares às pessoas para que pudessem convertê-las em capital. O orçamento era de US$ 360 milhões, mas só US$ 120 milhões foram empregados. O que aconteceu? Os burocratas tinham um bom e centralizado mapa das terras, mas os pobres não acreditavam no sistema. Tinham medo da burocracia, dos fiscais e não se conseguiu legalizar nem 10% das propriedades.
DINHEIRO ? Você trabalharia com Lula?
SOTO ? Estamos em seis países e temos 21 pedidos para novas consultorias. Fui ao Afeganistão, à Argélia e há poucos dias estive com Vladimir Putin, da Rússia. Os russos calculam o setor informal em 60% da economia e querem mudar. Em todo o mundo, sempre que houve uma revolução nas estruturas de propriedade, houve um Thomas Jefferson, uma pessoa determinada a mudar as regras do jogo. No Brasil, Lula parece ser o revolucionário.
DINHEIRO ? Por que o sr. foi considerado um inimigo da esquerda em seu país?
SOTO ? Trabalho com muitos governos de esquerda, como o Haiti e a Argélia. Eu, pessoalmente, acredito que a solução para o problema dos pobres é dar-lhes instrumentos para que entrem no mercado. Eles são grandes empreendedores. O que aconteceu foi que, num discurso em 1988, o ex-presidente americano Ronald Reagan disse que eu era um herói do capitalismo. Fui imediatamente rotulado. A outra razão é que a palavra propriedade sempre fez parte da linguagem da direita. Só que a mensagem da direita nunca foi dar propriedade aos pobres, e sim mantê-la onde ela sempre esteve.